“Não há uma fórmula mágica”, mas um manual pode ajudar quando suspeitas de mutilação genital chegam às CPCJ

Em 2020, não houve processos abertos nas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens por perigo de mutilação genital feminina. Novo manual para as CPCJ traz casos práticos e fluxograma de actuação. Ministério Público é accionado sempre que há crime, mas rede de entidades trabalha para prevenir casos de mutilação das meninas.

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Sara Jesus Palma

As Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) têm desde quinta-feira, 4 de Fevereiro, um manual de procedimentos renovado para casos suspeitos de corte genital de meninas e jovens. O guia Colaborar activamente na prevenção e eliminação da mutilação genital feminina, publicado há cinco anos, traz agora aspectos mais práticos, com contributos de algumas CPCJ, “para que todas as comissões, mesmo aquelas que têm um contacto mais distante com esta realidade, caso venham a ter algum caso, saibam como actuar de forma mais ágil, mais prática, mais fácil”, explica ao PÚBLICO a presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), Rosário Farmhouse.

Hoje, 6 de Fevereiro, assinala-se o Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina (MGF). Trata-se de um corte ao qual são submetidas meninas e mulheres em vários países do mundo - em Portugal, vivem mais de 6500 mulheres que terão sido submetidas a esta prática -, no contexto de costumes tradicionais. Apesar de a MGF ser uma realidade para muitas comunidades em Portugal, estimando-se que cerca de 1800 meninas com menos de 15 anos estejam em risco de ser cortadas, o número de casos que chegam às CPCJ são “mínimos”, nota a presidente da comissão nacional. Entre 2015 e 2019, foram abertos 20 processos de promoção e protecção por risco de que as meninas viessem a ser submetidas à prática, nove dos quais em 2019. “No ano de 2020 não tivemos nenhum caso identificado que tivesse chegado às comissões de protecção de crianças e jovens”, indica Farmhouse.

É importante notar que a abertura de um processo de promoção e protecção pela CPCJ não significa que tenha ocorrido MGF. Por vezes, sabe-se na escola ou na consulta no centro de saúde que a família está a planear uma viagem ao país de origem, nas férias, para “uma grande festa” ou para “apresentar a menina aos avós”. É então altura de conversar com os pais, perceber se a prática é tradição da família, recordar as consequências para a saúde da criança, envolver a CPCJ para traçar um plano de acompanhamento.

Tal como é habitual em outras situações de risco identificadas pelas comissões, são sempre privilegiadas as chamadas “medidas em meio natural de vida”, mantendo a criança junto dos pais ou, quando possível, em casa de familiares - isto é, quando não existe perigo de vida para a criança. Até hoje, dos processos que foram comunicados à comissão nacional, em apenas um caso foi decretada uma medida de retirada da criança à família. A situação, que se tornou notícia, aconteceu no Seixal em 2019, quando duas meninas - uma recém-nascida e a irmã de dois anos - foram retiradas à família, depois de a mãe ter alegadamente afirmado às enfermeiras que planeava viajar em breve à Guiné-Bissau para submeter as filhas à tradição (o que não veio a acontecer). “Que tenhamos conhecimento, não houve outro caso semelhante”, diz Rosário Farmhouse.

Além de indicações mais práticas sobre a resposta face a “situações de risco, perigo ou de ocorrência de MGF”, incluindo um exemplo de caso, o manual preparado pela equipa técnica da CNPDPCJ traz ainda um fluxograma de comunicação de potenciais casos, distinguindo as situações em que é preciso accionar o Ministério Público - nomeadamente, quando há indícios de crime ou não é possível trabalhar em colaboração com os pais. O manual está disponível no site da CNPDPCJ.

Cuidar das meninas

A psicóloga Cláudia Tinoca sabe que o conhecimento do fenómeno pode ser crucial no contacto com as crianças. É presidente da CPCJ de Odivelas há poucos meses, mas já antes, como técnica da câmara municipal, esteve envolvida no trabalho realizado no território em matéria de combate às práticas tradicionais nefastas, incluindo a organização do último encontro regional para uma intervenção integrada pelo fim da MGF, uma iniciativa de municípios da Grande Lisboa. Em conversa com o PÚBLICO, sublinha: “Não há uma fórmula mágica para todos os casos”. Para Cláudia Tinoca, é crucial que as CPCJ sejam vistas pelas meninas como um lugar onde serão cuidadas. Reconhece o “dilema existencial” de uma menina que, querendo fugir à tradição da sua família, hesite em procurar ajuda com medo de prejudicar os pais. Um receio que poderá ser maior face à recente condenação de uma jovem mãe, na primeira vez em que o crime foi julgado em Portugal. É por isso essencial a aposta na prevenção, de forma a proteger as meninas antes de serem submetidas à prática. “É importante que os pais trabalhem connosco”, acrescenta ainda.

Importa também que os profissionais estejam atentos a estes sinais, e por isso a sensibilização para a prevenção nas escolas passa pela formação. Odivelas é um dos territórios da região de Lisboa e Vale do Tejo, onde desde 2018, está no terreno o projecto Práticas Saudáveis, coordenado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT), no âmbito do qual foram formados centenas de profissionais de saúde, incluindo enfermeiros de saúde escolar. A pandemia, contudo, veio dificultar o passo seguinte, nomeadamente esforços de formação de profissionais na área da educação, como professores, educadores e auxiliares de acção educativa.

Como em tantas áreas, o último ano tem sido “muitíssimo desafiante” para as comissões de protecção de crianças e jovens, já que muitas das entidades com competência em matéria de infância e juventude “estiveram a maior parte do ano confinadas, e eram as principais comunicadoras de situações de perigo”, conta Rosário Farmhouse. Com as crianças longe do olhar de profissionais, como professores e educadores de infância, houve a preocupação de desenvolver novos canais para comunicar situações de risco ou perigo - como a linha Crianças em Perigo, que recebeu quase 600 chamadas, e o formulário online, que teve “quase 800” comunicações em seis meses -, que vieram trazer maior conhecimento sobre o que se estava a passar com as crianças em casa. “Estávamos perante situações de parentalidade fechada em casa, em que as crianças não tinham contacto com nenhuma das entidades, e podiam estar a sofrer situações de violência”, explica. 

Ainda sem números concretos sobre 2020, “a violência doméstica foi uma das tipologias que notoriamente aumentou, bem como o abandono escolar”, alerta Farmhouse. Em 2020, entre os processos comunicados à comissão nacional, não houve nenhum aberto por perigo de MGF, mas os números do ano anterior mostram a importância de capacitar as comissões, em particular em áreas fora da Grande Lisboa (onde já existe uma rede mais articulada). Dos nove processos de promoção e protecção abertos em 2019, três ocorreram no distrito do Porto.

“São práticas mais invisíveis, mas que estão muito enraizadas nalgumas culturas”, nota ainda Rosário Farmhouse. “Não sendo uma prática religiosa, a verdade é que é uma prática cultural e funciona como um requisito para o casamento, como uma questão de identidade”, explica a presidente da CNPDPCJ, que entre 2008 e 2014 exerceu o cargo de alta-comissária para a Imigração e Diálogo Intercultural (actual Alto Comissariado para as Migrações). Muitas mulheres que foram excisadas acabam por fazer o mesmo às suas filhas porque consideram que é a única forma de lhes garantir um futuro dentro da comunidade. “É preciso ajudar a compreender que há outras formas de poderem fazer parte da comunidade, sem se magoarem. Mas isso leva muito tempo, não é?”

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