Recepcionou suporte para experienciar a sua resiliência?
O pior não é ouvir e ler “resiliência” a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde devia estar “resistência”.
É habitual, e é verdade, dizer-se que as línguas evoluem, que vão absorvendo novos termos, ou dando significados novos a palavras antigas (como documentam, aliás, os dicionários, desde as edições mais vetustas às actuais), mesmo contra o gosto e a vontade de filólogos e linguistas. Mas há, como sempre houve, “modas” que não correspondem a qualquer evolução, antes a um retrocesso, até porque afectam a clareza do discurso. Há dias, no PÚBLICO, Manuel Monteiro (autor, revisor e formador de revisão de textos) alertava para o abuso da palavra “colocar” em vez de, simplesmente, “pôr”. “Coloque-se na fila” em vez de “ponha-se na fila”, por exemplo.
Mas há mais palavras que têm vindo a substituir, automaticamente, outras bem mais simples, e muitas vezes sem atender ao seu real significado. Por exemplo: agora já não se recebe nada, recepciona-se (ou “receciona-se”, usando o estranho termo que o Acordo Ortográfico inventou só para Portugal e que mais ninguém usa); e também não se percebe nada, percepciona-se; quanto a viver, começa a ser raro, hoje vivencia-se; a palavra entender vai pelo mesmo caminho, substituída pelo anglicismo realizar; gerir, então, surge cada vez mais como gerenciar; coisa rara é também experimentar, já que a moda é experienciar (outro escusado anglicismo); e se precisamos de apoio nalguma coisa (como apoio técnico), o mais certo é darem-nos suporte. Os acontecimentos vividos passam a acontecimentos vivenciados e as experiências de qualquer tipo hão-de ser “experienciações” ou “experienciamentos” (sabe-se lá o que o futuro nos reserva).
O que se ganha com tais trocas? Mais letras, mais sílabas, menor clareza. Imaginem estas frases, caso tais modas se tornem regra: “Já experienciou o bife da casa? É muito bom!” ou “Posso experienciar este par de sapatos?”; “Recepcionou o meu livro? Percepcionou o que escrevi?”; “Como vivenciou a sua semana de férias?”; “Concederam-lhe o suporte que solicitou?”; “Quem está a gerenciar esta loja?”; “Explicaram-me tudo, mas não realizei o que queriam dizer”. Ou, como ironicamente sugere Manuel Monteiro no seu texto, “Posso colocar-lhe mais vinho no copo?”, concluindo: “Só me resta desejar que o ‘pôr-do-sol’ não se transforme no ‘colocar-do-sol’. E que quem citar Camões não diga que Inês estava linda COLOCADA em sossego.”
Convém notar que, exceptuando “realizar” no sentido de “entender”, tais termos existem e os que não constam de dicionários portugueses já ganharam registo no Brasil, como “experienciar” ou “gerenciar”. A TAP, por exemplo, tem uma página em português do Brasil (e ali escreve, como deveria, “registre-se” por “registe-se” e “planejar” por “planear”) com o título “Preparar e gerenciar viagem”; e há no Brasil uma agência de turismo intitulada “Vivenciar” e frases do género “Vem vivenciar grandes momentos com a gente!”. Mas também por cá se apela a “vivenciar momentos únicos”, como se lê na página da Câmara de Vila Nova de Gaia. Será mesmo atendendo ao significado da palavra? Ou será vivenciar “mais giro” do que viver?
É porque convém sempre atender ao contexto. Não é a mesma coisa afirmar, em Portugal, “eu não apoio esse candidato” [não lhe dou aval] do que “eu não suporto esse candidato” [não posso nem vê-lo]; tal como não é igual afirmar “vivi não sentindo que vivi” ou “vivenciei não sentindo que vivi”, porque “vivenciar” significa, segundo a generalidade dos dicionários, “viver algo, sentindo intensamente”. Mas será mesmo isso que querem dizer os que usam e abusam de tal palavra?
Nesta moda entra ainda a palavra “resiliência”. Há umas décadas, os dicionários em Portugal só registavam o seu sentido na Mecânica ou na Física. A edição de 1981 do Grande Dicionário da Língua Portuguesa (de José Pedro Machado) falava apenas em “valor ou número característico da resistência ao choque de um material, e que representa a energia absorvida pela rotura de uma barra de secção unitária”; e o Dicionário da Academia das Ciências até ignora a palavra (passa directamente de “resignatário” para “resina”, pág. 3217). Mas, seguindo o inglês “resilience”, outros acrescentaram-lhe um novo sentido, figurado: “Capacidade de superar, de recuperar de adversidades” (Priberam), “Capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças” (Houaiss), “Capacidade de defesa e recuperação perante fatores [sic] ou condições adversos [sic]” (Infopédia, que lhe acrescenta ainda significados na Ecologia e na Psicologia).
O pior não é ouvir e ler “resiliência” a torto e a direito; o pior mesmo é vê-la escrita e ouvi-la onde devia estar “resistência”. E são tantas vezes! Assim haja “resiliência” para suportá-las.