Jon Hassell (1937-2021): a “música do quarto mundo” perdeu o seu criador
Músico e compositor americano morreu aos 84 anos, de causas naturais. Para trás fica uma obra visionária e influente que foi do jazz à música ambiental, cruzando fronteiras e juntando a tecnologia à tradição.
O trompetista e compositor norte-americano Jon Hassell, influente criador da estética musical “fourth world music” (“música do quarto mundo”) e figura com um trabalho marcante nos campos do jazz e das vanguardas, morreu este sábado aos 84 anos. “Após pouco mais de um ano a lutar contra problemas de saúde, o Jon morreu pacificamente ao amanhecer, de causas naturais”, explicou a família num comunicado publicado na página de Facebook do artista. “Ele prezava muito a vida, e deixar este mundo não foi fácil, visto que havia ainda muito mais que ele queria partilhar através da música, da filosofia e da escrita.”
Nascido a 22 de Março de 1937 em Memphis — o músico orgulhava-se de “ter vindo do mesmo sítio que os blues” —, Jon Hassell estudou na Eastman School of Music, da Universidade de Rochester (Nova Iorque), antes de se mudar para a Alemanha e entrar na Cologne Course for New Music, instituição fundada e orientada por Karlheinz Stockhausen, nome incontornável da música electro-acústica. Foi aí que conheceu Irmin Schmidt e Holger Czukay, que mais tarde viriam a formar os Can, banda pioneira do chamado krautrock.
Depois de regressar aos Estados Unidos, Jon Hassell colaborou com o compositor minimalista Terry Riley e juntou-se a La Monte Young, que nos anos 1960 e 1970 liderou o Theatre of Eternal Music, grupo vanguardista de que também fazia parte John Cale, dos Velvet Underground. Hassell viria ainda a estudar com Pandit Pran Nath, mestre indiano do estilo de canto “kirana gharana”, cujo trabalho foi uma fonte de inspiração para o americano.
O artista lançou o seu primeiro álbum a solo (Vernal Equinox) em 1977 e, em 1980, trabalhou com Brian Eno em Fourth World, Vol. 1: Possible Musics. “Naqueles dias da Guerra Fria, havia o primeiro mundo e o tácito segundo, que era o império soviético”, diria, anos depois do lançamento desse disco colaborativo, para contextualizar a origem do termo “fourth world music”. “Qualquer coisa à margem desses dois mundos era o ‘terceiro mundo’; por norma, era assim que se falava dos países em desenvolvimento. E esses países em desenvolvimento eram sítios em que a tradição ainda estava viva e a espiritualidade era inerente à sua produção musical. O ‘quarto mundo’ foi uma espécie de ‘3+1’.”
Por outras palavras, a “música do quarto mundo” de Hassell consistia numa “meta-pop” simultaneamente “primitiva e futurista”, que juntava “características de estilos étnicos mundiais” a “técnicas electrónicas avançadas”. “Sempre me senti atraído por formas de música não ocidentais”, explicou o compositor ao Ípsilon numa entrevista concedida em 2009, a anteceder a sua vinda ao teatro Maria Matos, em Lisboa. “Música de origem ancestral, pré-rádio, pré-indústria, em que não exista uma divisão clara entre o popular e o erudito. Uma música ouvida e tocada por novos e velhos, com uma componente grande de improvisação, de puro instinto.”
Em 2009, Eno escreveu uma carta aberta intitulada “The debt I owe to Jon Hassell” (“A dívida que tenho para com Jon Hassell”), enaltecendo o impacto que a obra do compositor teve na sua vida e no panorama da música contemporânea. “Ambos estávamos conscientes da beleza e da sofisticação da música que estava a ser feita fora da nossa cultura — aquilo a que hoje se dá o nome de ‘música do mundo’. E ambos nos sentíamos intrigados pelas possibilidades das novas tecnologias musicais. Mas, além destas questões, havia uma ideia maior: a ideia da música como um lugar onde se podia conduzir novas experiências sociais. A experiência do Jon era imaginar um mundo ‘cor-de-café’: um mundo globalizado em constante integração e hibridização, onde as diferenças eram celebradas e dignificadas”.
Ao longo dos anos, e para além da intensa actividade nos anos 1970-80, viria a lançar outros álbuns importantes nas últimas décadas como Dressing For Pleasure (1994), Fascinoma (1999) ou Last Night The Moon Came Dropping It's Clothes in The Streets (2018), tendo trabalhado ainda com nomes como David Byrne — o compositor tocou o seu trompete nas gravações de Remain in Light, histórico disco dos Talking Heads —, David Sylvian, Peter Gabriel, o guitarrista Ry Cooder, o grupo Kronos Quartet ou os Tears For Fears. “Devo muito ao Jon. Na verdade, muita gente deve muito ao Jon”, resumia Brian Eno há mais de dez anos no último parágrafo da sua carta aberta. “Ele semeou uma poderosa e fértil semente cujos frutos ainda hoje colhemos.”