A fome dos outros: “Há imagens que devem ficar só connosco”

No ano 2000, o fotógrafo e editor de fotografia do PÚBLICO Manuel Roberto regressou à terra que o viu nascer, Moçambique, com a missão de registar os efeitos das piores cheias de que há registo no país. Um retrato que nunca fez, e que ficou gravado na memória, mudou para sempre a sua vida.

©Manuel Roberto
Fotogaleria
©Manuel Roberto

Era Março de 2000 e o fotojornalista Manuel Roberto pisava, novamente, o país que o viu nascer: Moçambique. Aterrava em Maputo pelos piores motivos. As chuvas torrenciais trazidas pelo ciclone Glória entravam país adentro e não davam tréguas aos seus habitantes. Numa das zonas mais afectadas pela tempestade, 200 quilómetros a norte de Maputo, no vale do Limpopo, o cenário era "dramático", descreve fotógrafo e editor de fotografia do PÚBLICO, em entrevista ao P3. O grande rio tinha galgado as margens e tomado de assalto as aldeias, deixando a todos sem casa e sem alimento.

O cenário foi particularmente chocante para Manuel Roberto, que cresceu na região. "A minha avó materna vivia nas margens de Limpopo e ninguém sabia onde estava", refere o então enviado especial do PÚBLICO. "O distrito de Chokwé estava literalmente isolado." A ajuda internacional, que chegou tardiamente, não evitou a perda de 800 vidas nas piores cheias de que há registo no país. Roberto temia que o pior tivesse sucedido. 

Em Chokwé, o fotógrafo deparou-se com "uma terra transformada num imenso rio lamacento", narra. "Um tractor cor-de-rosa recolhia cadáveres. Os que fugiram a tempo da torrente de água, que em poucas horas inundou a vila, estavam num centro de acomodação." Um rio de gente aguardava a distribuição de alimentos que chegariam por via aérea. "Crianças, velhos, mulheres e homens formavam longas filas para conseguirem uma marca de tinta lilás no dedo indicador, que os identificava como vítimas das cheias." Só com essa marca conseguiriam ter acesso a apoio, alimento. 

No interior desse centro de acomodação, Roberto apontava a lente a um grupo de pessoas famintas, sentadas no chão, quando, através do visor da câmara analógica, viu a sua avó Luísa. "Foi um choque", conta. "Fui incapaz de fotografar. A primeira reacção que tive foi ir ter com ela, metê-la num carro e levá-la directamente para Maputo." Essa fotografia que nunca chegou a concretizar mudou a sua vida, garante. "Foi aí que percebi que nos devemos colocar no lugar do outro antes de disparar, que temos o dever de retratar o outro com dignidade." Roberto não fotografou, mas a imagem ficou gravada na sua memória. "Há imagens que devem ficar só connosco. Emulsionadas em nós." 

Ao fotografar tantas pessoas em posição de fragilidade, em Moçambique, nesse ano, Roberto sentiu que, de certo modo, fazia uma reportagem sobre si. "Também fui criança ali, também passei por privações em Moçambique numa altura muito crítica da sua história", explica. O título da série que revela ao P3, A fome dos outros e a fotografia que não fiz para o meu jornal, que vive hoje nas páginas da segunda edição da Kiosk Zine, "é uma pequena provocação". "A fome dos outros é isso mesmo, a fome das outras pessoas; não a nossa, não a dos nossos. Só depois de passarmos por isso é que percebemos essa realidade. E eu já passei por isto."

As fotografias que partilha com o P3 são digitalizações de negativos analógicos a cor, revelados "em condições extremas". O filme onde repousam estas imagens foi revelado sob o calor instável de uma fogueira, explica o fotojornalista. "Nessa altura, tínhamos de revelar os filmes, secá-los, digitalizá-los e enviá-los para os jornais através de uma ligação de satélite. Cada fotografia demorava uma a duas horas a ser transmitida, era tudo muito arcaico. Eu tinha uma mala enorme cheia de materiais químicos e instrumentos para poder fazer a revelação onde quer que estivesse."

As fotografias que partilha, agora, com o Kiosk Zine e o P3, à excepção da 11.ª desta fotogaleria, que fez primeira página no PÚBLICO, são inéditas e são produto cru, sem tratamento de cor. O rebordo negro presente nas imagens é o limite natural do fotograma, o que denuncia não ter havido qualquer reenquadramento.

©Manuel Roberto
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