Um novo contrato social para os farmacêuticos da comunidade
Trata-se de abrir caminhos para perceber como podem os farmacêuticos comunitários, maioritariamente jovens num país envelhecido, ajudar a construir um sistema de saúde e de bem-estar mais equitativo e sustentável, como pilar fundamental de um Estado Social verdadeiramente ao serviço de todos.
1. Afrontar o tema da relação entre a profissão farmacêutica, o Estado e os cidadãos portugueses é tema complexo, mas fundamental no momento actual em que a sustentabilidade do sistema de saúde é alvo de intenso debate. Convém, por isso, tratar de discutir seriamente a necessidade de acomodar os esquemas legais que a regem à realidade da profissão e do país.
Evidentemente, e isso já é visível em alguns sectores de opinião e de decisão, que existem tentações de redigir um novo quadro legal completo e definitivo, ou de considerar o actual uma obra acabada e inexpugnável. Contudo, vivendo num regime democrático, é preciso examinar com total objectividade as demandas dos farmacêuticos e dos cidadãos, e integrar as suas opiniões e contributos.
2. Comecemos por assentar alguns factos. Actualmente, cerca de 70 a 80% dos farmacêuticos que exercem na comunidade trabalham por conta de outrem, o que resulta numa alteração radical relativamente à situação de há trinta anos. Consagrou-se uma liberalização da propriedade de farmácia em 2007 (regressando à situação anterior a 1965), mas sem liberalização da instalação. Ao mesmo tempo, passou a exigir-se, por regra, um quadro mínimo de dois farmacêuticos em cada farmácia, que haveria de constituir tendencialmente (mas não normativamente) a maioria do pessoal prestador de cuidados (nunca é demais recordar que farmacêutico e farmácia são realidades distintas).
Entretanto, a remuneração dos serviços farmacêuticos (conceito diferente de serviços da farmácia, pois apenas respeita a actos técnico-científicos, diferenciados, praticados por estes profissionais) continua por contratualizar. O acto farmacêutico, legalmente definido, apesar das actualizações a que foi sujeito, não sofreu alterações de monta, com a possível excepção da vacinação; e continua sem atingir o máximo das suas possibilidades de desenvolvimento legislativo. Surge ainda, de forma premente, o desafio da indiferenciação das profissões liberais, encaradas por alguns como estruturas pós-corporativas resistentes à prossecução de políticas públicas definidas pelos legítimos representantes do Estado, sufragados em eleições democráticas.
3. Perante o exposto, está-se perante uma encruzilhada na vida dos farmacêuticos comunitários portugueses. Uns preferem ignorar os desafios postos pela realidade concreta e falar apenas dos progressos (nomeadamente logísticos) feitos nas últimas décadas, da informatização pioneira feita na rede de farmácias, que as farmácias portuguesas são as melhores do mundo (curiosamente, evitam referir-se aos farmacêuticos que lá exercem funções) e que apenas precisariam de uns aperfeiçoamentos dentro do que já existe… tudo conjugado no passado. Há outros defendendo que tudo está mal, que a proletarização dos farmacêuticos é insolúvel e que tais deficiências só se resolvem partindo do zero, assumindo um corte total com o passado, com propostas irrealistas (embora bem-intencionadas, algumas) de valorização profissional. Por fim, existirá ainda quem, com realismo e simplicidade, reconheça que nas virtudes dos actuais instrumentos legais e processos de intervenção farmacêutica possa estar a solução para as suas insuficiências que, com espírito crítico, reconhecem significativas. A encruzilhada resume-se, assim, a três opções: continuidade, ruptura ou reforma.
4. Há, portanto, que fazer escolhas. A continuidade de um modelo centrado no medicamento (produto), actualizado no essencial. Por outro lado, uma ruptura que ponha o foco no farmacêutico (profissional), exigindo-lhe uma intervenção clínica imediata. Nenhuma destas alternativas parece capaz de assegurar que o cidadão está no centro do sistema e que a valorização do acto farmacêutico é instrumento fundamental para atingir este desiderato.
E quanto à possibilidade de reforma? Parece-me viável reflectir sobre um processo de transformação do contrato social dos farmacêuticos da comunidade, que deverá assentar na integração harmoniosa de quatro instrumentos até aqui vistos separadamente: a definição legal do acto farmacêutico, o contrato colectivo de trabalho, o estágio curricular, e a especialidade em farmácia comunitária, com vista à constituição de uma verdadeira carreira farmacêutica na comunidade.
Como fazê-lo na prática? Primeiro: harmonização nacional do estágio curricular em farmácia comunitária, com programa e critérios comuns, cujo acesso seria feito por via de concurso geral, assegurando que todos os estudantes atingiam um nível satisfatório de conhecimento e competências no final da sua formação pré-graduada (dando um sinal às farmácias sobre a necessidade de incorporarem inovação e diferenciação nas suas práticas). Segundo: associar o contrato colectivo de trabalho à especialidade em farmácia comunitária, tornando regra a sua aplicação e fazendo corresponder aos diferentes níveis salariais distintos graus de diferenciação, acabando com a progressão baseada na antiguidade, prevendo remuneração específica para os serviços farmacêuticos, e dando utilidade prática à obtenção do grau de especialista (subsidiariamente, tal levaria, a médio prazo, a que os cargos de direcção técnica estivessem apenas reservados a especialistas). Terceiro: reflectir sobre o conteúdo do acto farmacêutico, não tendo receio de antecipar o debate e marcar a agenda.
5. Esta proposta de contrato social deve ser obra de todos e nunca favor, concessão ou imposição, independentemente da sua origem. Para lograr a sua realização precisa-se do contributo de todos aqueles que conformam a profissão e da sociedade no seu conjunto. Trata-se de abrir caminhos para perceber como podem os farmacêuticos comunitários, maioritariamente jovens num país envelhecido, ajudar a construir um sistema de saúde e de bem-estar mais equitativo e sustentável, como pilar fundamental de um Estado Social verdadeiramente ao serviço de todos.