Saúde - bazooka financeira sem mudança estrutural?
Uma bazooka financeira sem uma nova organização e um compromisso claro com os profissionais não será suficiente.
O SNS foi uma história de sucesso, mas, nas duas últimas décadas, problemas com impacto negativo na eficácia dos serviços públicos de Saúde minaram a confiança dos cidadãos. Um problema multifactorial e complexo com várias causas:
- Saúde como Serviço Público tendencialmente gratuito assumido como monopólio benevolente coexistindo com incremento dos custos globais, envelhecimento da população, maior prevalência das doenças crónicas, maior consumo de cuidados médicos diferenciados e maiores necessidade de Cuidados Continuados. Daí, subfinanciamento público crónico, défices anuais na operação SNS, aumento da despesa pública e da contribuição média dos portugueses em Saúde.
- Ambiguidade entre um discurso político de defesa do modelo público e a praxis que nunca dispensou participação do sector privado e/ou social. A criação de Mercado para a Saúde, oposto ao monopólio benevolente fundacional e com impacto claro nos profissionais de Saúde surgiu sem regulação efectiva e perante debate político identitário de tribo: pró ou contra o SNS.
- Política de Recursos Humanos baseada em baixos salários, funcionalização e proletarização reais dos profissionais de Saúde, médicos, enfermeiros e outros, porventura agravadas pela decisão das 35 horas semanais, em vez do pagamento justo das 40 horas.
- Burocratização do SNS com compartimentação excessiva entre Cuidados Primários/Hospitalares/Continuados e Paliativos e pouca flexibilidade para adaptação aos novos desafios da Medicina Clínica: da Medicina Centrada no Doente com reconhecimento dos direitos dos doentes, à Medicina de Equipa e Integração de Cuidados, onde competências e capacidades convergem para o doente, em vez de peregrinação por múltiplos serviços e consultas.
Um Sistema de Saúde em Portugal sustentável no contexto da riqueza nacional e capaz de aportar valor acrescentado ao progresso do país será o objectivo. Quais as prioridades?
- Clarificação entre o valor essencial o direito constitucional indeclinável ao Bem Saúde e à Medicina Clínica e o modelo operacional – Serviço Nacional de Saúde (SNS). O próprio sistema em Portugal é misto, público e privado 50 anos após a fundação do SNS. Vários países baseiam a prestação pública de Medicina Clínica num sistema misto, público e privado, financiado por seguro social obrigatório isolado ou em associação com outro privado. Dupla cobertura, realidade que já vigorará em cerca de 1/3 da população portuguesa que se optar pelo sistema privado de cuidados médicos não terá direito a comparticipação pública já paga nos seus impostos.
O sistema dito bismarkiano liberta o Estado dos custos da gestão directa das instituições, introduz competitividade nos componentes do Sistema de Saúde, permite concentrar recursos financeiros na Regulação, na Saúde Pública propriamente dita e no financiamento público de sectores liderantes, da prestação de serviços, à investigação e inovação. E reconhece o poder do cidadão doente (empowerment) ao permitir-lhe escolha informada. Mais caro? Não, quando se avaliam custos globais, incluindo a comparticipação pessoal directa.
- Criação de Entidade Pública autónoma – SNS Portugal – com competências de gestão profissional e capacidade para negociar a participação dos sectores, privado e social. Uma necessidade e uma vantagem, como aliás aconteceu no Reino Unido. Não é uma proposta original; foi discutida nas décadas de 80 e 90 falando em separação de funções e recentemente um grupo da NOVA Medical School e outro do Porto, reintroduziram o tema no espaço público.
- Cultura de Avaliação e Responsabilidade para avaliação permanente. A revolução digital é o instrumento essencial. Desde interface doente/utente e sistema de saúde, ao registo padronizado dos dados clínicos relevantes permitindo o acesso à informação clínica relevante no doente em necessidade e em qualquer interface institucional. Um desafio que terá de envolver a comunidade científica e profissional: perde-se tanto valor acrescentado com este divórcio entre administrativos e profissionais, veja-se como fizeram os suecos e o seu sucesso na avaliação dos resultados clínicos no seu sistema de saúde. Monitorização à distância, utilíssima nos doentes crónicos poupando desconforto ao doente e deslocações excessivas, até a possibilidades mais sofisticadas, que mudarão a nossa actuação tornando-a mais eficaz, rentável, sem que se perca a verdadeira dimensão humana da Medicina. O investimento nas tecnologias e inovação em Saúde é virtuoso, temos capacidades nacionais desde que haja avaliação e rigor, mais que exposição mediática.
- Visão global e integrada do Sistema de Saúde versus compartimentação entre sectores assistenciais de Cuidados de Saúde Primários/Hospitalares/Continuados e Paliativos. A consequência é conhecida: plétora dos serviços de Urgência hospitalar e ocupação excessiva. Realidade que não mudamos há décadas. Mudar o sistema da Medicina ambulatória realizada nos Centros de Saúde, dotando-os de capacitação para a realização de exames de diagnóstico que lhes confiram autonomia e reduzam a dependência hospitalar. Deve ser articulada com a política de construção hospitalar, porque a sua eficácia, permitirá reduzir a necessidade de internamento hospitalar. É uma mudança de foco indispensável.
- Nova Política de Recursos Humanos assente na valorização dos profissionais, na promoção efectiva de meritocracia, na implementação de modelos de governação clínica séria e centrada em objectivos clínicos e não só indicadores administrativos. Uma bazooka financeira sem uma nova organização e um compromisso claro com os profissionais, preservando valores essenciais de Solidariedade, Equidade, Inclusão e Qualidade não será suficiente. Einstein tinha razão: We cannot solve our problems with the same thinking we used when we created them.
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