As avós viúvas estão sozinhas
O luto de um amor da nossa vida é inominavelmente trágico, mas a forma como estas mulheres se levantam e continuam a cuidar de si e dos outros é verdadeiramente admirável.
Querida Ana,
Quero falar de avós viúvas. De avós sozinhas. E são muitas.
Deixa-me debitar umas estatísticas que ajudam a perceberes porque este é mesmo um assunto que merece uma birra (embora, como todas, pouco possa adiantar): em 2019 no grupo dos portugueses dos 65 aos 69 anos há 85 homens por cada 100 mulheres, o que já é mau; mas entre os 80 e os 84 anos, desce para 64; e nos que têm 85 e mais anos, só há 48 homens por 100 mulheres, ou seja a probabilidade de uma criança ter uma bisavó é muito mais forte do que a de ter um bisavô. Os números revelam que são elas a enviuvar mais cedo, e depois da morte do marido, a viver sozinhas.
O luto de um amor da nossa vida é inominavelmente trágico, mas a forma como estas mulheres se levantam e continuam a cuidar de si e dos outros é verdadeiramente admirável. A dor não desaparece, nem sei sequer se diminui, mas são muitas vezes o pilar da família, velando pelos filhos e pelos netos, tão mães e avós galinhas como sempre. É de se lhes tirar o chapéu.
Mas Ana, fico ainda mais cheia de admiração quando não deixam de ter vida própria, de trabalhar, de estudar, de viajar e de manter uma parte da sua vida só sua, sem sentirem que têm de dar conta dela a ninguém. E é aí que me parece que ainda temos muito terreno por conquistar — é difícil a uma viúva voltar a namorar, ou mesmo a ter um amigo colorido, mesmo que queira.
Lembras-te da nossa vizinha que me chamou na rua, puxando-me para um canto de onde as “quadrilheiras” — palavra que nunca tinha ouvido! — não nos viam, para me dizer que tinha um caso com um viúvo um pouco mais novo do que ela, mas que nem as nossas outras vizinhas, nem sobretudo os seus filhos podiam saber. Depois de a ouvir (profundamente divertida, confesso), cheguei à conclusão que o sujeito queria basicamente quem lhe passasse a ferro as camisas, mas a verdade é que ela andava tão feliz que fiz o que esperava de mim: dei-lhe a minha bênção.
Queria mesmo fazer uma birra para que os filhos não se metessem na vida amorosa dos pais viúvos, sob o pretexto de que precisam de ser protegidos de um qualquer possível caçador de fortunas. Fazer uma birra contra o juízo invejoso das “quadrilheiras” que maldizem as mulheres que continuam a sair e a ter um namorado à porta, como se de alguma forma esse novo amor, ou entretenimento, diminuísse o amor profundo que tinham pelo marido. Uma birra contra as avós que por serem avós, acham que já não têm idade para estas coisas...
E sabes, Ana, quem podem ser os melhores defensores desta minha causa? Os netos. Os netos são mais livres, porque mais distantes no tempo do casal original, porque estão menos preocupados com heranças e contas bancárias, e sobretudo com a opinião dos outros. Por isso, filha, acho que devíamos fazer uma campanha para sensibilizar os netos adolescentes a levar os avós com eles para a noite, com ou sem bengala.
Querida Mãe,
Escreve esta birra na altura certa porque estou a acabar o livro que a mãe me emprestou do psicoterapeuta Irving Yalom chamado A Matter of Death and Life: Love, Loss and What Really Matters in the End (numa tradução livre, “Uma questão de morte e de vida: amor, perda e o que verdadeiramente importa no final"), escrito em co-autoria com a mulher durante os últimos meses de vida, vítima de uma doença terminal. Neste caso é ele que fica viúvo, mas o que me pareceu relevante para a sua birra é reflectirmos sobre isto:
Os avós que ficam sozinhos, apesar de poderem reencontrar significado e felicidade, estão de luto. O luto não dura uns meses, nem um ano, e vai-se fazendo de cada vez que nasce um novo neto, ou que esse neto faz uma gracinha nova. Com cada novidade que não se pode partilhar com a pessoa com quem se viveu durante (nalguns casos) décadas, vem a dor de saber que ela já não existe na Terra.
Sabe, mãe, enquanto ia lendo pensei que o hábito de vestir de preto não é tão absurdo como na minha inexperiência me parecia, porque numa sociedade que se esquece tão rapidamente de que a pessoa ainda está a sofrer, talvez a roupa seja uma forma exterior de relembrar os outros que essa perda existiu.
Estou a desviar-me do que lhe queria dizer. E o que lhe queria dizer é que, por vezes, os filhos impingem os netos aos seus pais viúvos como se lhes estivessem a oferecer o cálice da vida, e embora possa ser rejuvenescedor (para alguns, algumas vezes), é preciso lembrar-nos que essa pessoa está a descobrir quem é, num mundo em que não existe como casal. Parece-me que se tivéssemos mais respeito pelo luto verdadeiro seria mais fácil para as mulheres decidirem, mais tarde, se querem procurar outra relação, ou se lhe chegam as memórias do amor que viveram. E que nenhuma escolha é mais certa do que a outra.
A outra coisa que compreendi – estupidamente óbvia, mas na qual não tinha pensado com atenção — é que deixar crianças com um único adulto é muito, muito diferente do que com dois. Podemos não o ter em conta quando deixamos os nossos filhos com os avós que vivem sozinhos porque presumimos que como já “nos criaram”, serão mais do que capazes de cuidar destes. E são. Mas a que custo? Há avós que ficam muito tempo com os netos. Que não podem dizer ao marido “Leva-os a comer um gelado que agora vou descansar um bocadinho”. Quando estão tem de ser tudo a 100% e isso é duro!
Obrigada, mãe, por me ter posto a pensar nisto.
Beijinhos
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.