O murmúrio
Cresci num sítio de mar onde muitos eram pescadores, as mulheres apanhavam sargaço e passavam o Inverno de costas voltadas para o céu virando aquelas algas secas que o sol curtia. Para mim tudo aquilo era um mistério mas a praia não.
Há famílias que vivem presas por um fio. A nossa condição é débil: a estrutura principal rui e com ela pode levar vidas. Às vezes é só a morte de alguém que era o pilar daquela casa. Tudo se desintegra. A solidez tem que se lhe diga.
Cresci num sítio de mar onde muitos eram pescadores, as mulheres apanhavam sargaço e passavam o Inverno de costas voltadas para o céu virando aquelas algas secas que o sol curtia. Para mim tudo aquilo era um mistério mas a praia não.
Alda era alguém cujo pai tinha sido levado pelas ondas quando numa noite de tempestade se aventurou a ir pescar. Ainda hoje consigo intuir que aqueles que se encolhem e ficam em terra parecem menos homens. A coragem não se mede pelas redes lançadas. Tem de ser pela sensatez de escolher ficar em casa. Mesmo que a fome aperte.
O pai de Alda foi alguém de quem ouvi falar remotamente. A aldeia lamentou o seu desaparecimento: deixara uma viúva e dois filhos em idade escolar. Entre dentes, cada um em sua casa, perguntava-se o que havia de ser daqueles três, no fundo projectando neles a nossa vida. Como iria aquela mulher sustentar os filhos sem o seu pescador que arriscara a vida em noite de tempestade?
Lembro-me agora, num relâmpago melancólico e feliz, dos barcos que chegavam à praia de manhã cheios de robalos e tainhas ainda a sacudir a cauda e o povo juntava-se para ver, celebrar e comprar o peixe fresco trazido por aqueles homens.
Esse cheiro enchia a praia. Os miúdos faziam uma roda à volta do barco, os crescidos empunhavam o velho porta-moedas que servia de arma de negociação com os pescadores.
Já voltarei a Alda. Lembrei-me agora, neste álbum que sem querer abro para ver quem fui, de que muitos miúdos com quem privei perderam os pais para uma doença terrível. Era uma peste que corria a costa: a doença dos pezinhos. Os miúdos cresciam com medo de ter os passos contados. Os pais morriam, as mães cedo iam parar à cadeira de rodas. Crescemos entre uma ideia de morte próxima que só hoje processo. Fazia parte da nossa vida mesmo quando essa vida não era a nossa.
Alda era alta também. Tinha uma sobrancelha cerrada como a Kahlo e veio parar à minha turma do ciclo preparatório quando todos murmurávamos sobre a morte do pai dela. Éramos crianças que facilmente podiam comentar, entre o pacote de bolachas de baunilha do bar, o facto de o pai dela ter sido devolvido à areia desfigurado, sem olhos. Os miúdos não se poupam na franqueza. Os adultos refreiam o murmúrio.
Hoje, sem o mar à vista, vejo com clareza o que é a infância: foi uma pequena tempestade sem sabermos.
Alda aplicava-se muito nos estudos. Talvez em demasia para os que assistiam. Talvez porque ela e o irmão deviam isso à mãe viva e ao pai que já não os podia acompanhar. Nenhum deles queria viver do mar. Era certo.
Tínhamos uma professora de português, muito bonita: era uma mulher morena de cabelo preto que falava de forma elegante e que trouxe Sophia de Mello Breyner para o nosso universo, todo ele cheio de mazelas por esclarecer. Chamava-se Margarida, nome, que não por acaso, inclui o mar nela.
A professora Margarida trouxe muito mundo à nossa vida encoberta de nuvens que nem percebíamos que podiam nada dizer aos outros. Pais que morrem no mar? Mães com o destino traçado por uma doença sem cura? Gente que vivia do campo e não percebia que o alcoolismo não estava presente na casa de todos ou a violência doméstica não era uma consequência de o pai trabalhar muito e beber ainda mais? Há gente com uma vida tão difícil que tenho quase pudor em descrevê-la, mas ia-se murmurando tudo isto entre vizinhos, miúdos. Gente que se pendurava num muro e falava para não levar tudo para casa.
Alda um dia trouxe uma echarpe para oferecer à professora Margarida: era uma coisa fraca embrulhada com carinho. Quando a turma viu o presente aberto pela mulher elegante, um silêncio aterrador instalou-se na sala. A professora agradeceu e nós tentámos voltar à nossa rotina. Alda era esforçada mas nós não a compreendíamos. Processo mais uma vez o que se passou: houve discriminação nossa sobre aquela rapariga que não tinha pai, nem dinheiro, nem beleza, nem um futuro promissor pela frente a não ser que ela batalhasse muito por ele.
Não sei o que se passou depois com Alda. Perdi-lhe o rasto na secundária. Acredito que, como o pai, tenha remado contra a maré, sem medo. E que possa ter ido longe.
Somos sempre muito mais do que as nossas circunstâncias, do que o lugar de onde viemos, do que o molde para onde os outros nos empurram.
A vida às vezes cospe-nos para sítios improváveis.
Há ir e voltar.