Com o #MeToo chegaram as cláusulas de moralidade ao mundo editorial americano
Blake Bailey viu a editora WW Norton retirar de circulação a sua biografia de Philip Roth, na sequência de acusações de abuso sexual. Abriu-se caminho para a discussão de um segredo aberto no mundo literário americano: as cláusulas de moralidade que, alegam associações como a PEN America, podem limitar a liberdade de expressão dos escritores.
O caso de Blake Bailey, que, após caírem sobre si acusações de violação e abuso sexual viu terminado o seu contrato com a editora WW Norton e retirado das livrarias americanas a sua biografia de Philip Roth, abre caminho para a discussão de um segredo aberto no mundo literário americano: as cláusulas de moralidade que, diz-se, a maioria das editoras obrigam os escritores a incluir nos contratos e que, alegam associações como a PEN America, deixam os escritores desprotegidos e limitados na sua liberdade expressão. Os termos genéricos em que são escritas dão às editoras todo o poder, permitindo que um escritor veja o seu contrato terminado caso, por exemplo, profira declarações consideradas polémicas ou ainda antes de os actos criminosos de que é acusado terem sido provados, como no caso de Bailey.
Em declarações ao El País, Suzanne Nossel, da PEN America, fundada em 1922 para defender a liberdade de expressão no mundo literário e jornalístico, aponta que, “apesar de algumas variações nos termos [das cláusulas], o receio é que possam servir de desculpa para que um editor rescinda o contrato. Há muita margem para o abuso”. Como não se conhecem os exactos termos deste tipo de cláusulas, dadas as rígidas condições de confidencialidade, parece certo, porém, que a sua inclusão é neste momento a norma e uma exigência das editoras na altura de fechar contrato.
Apesar de cláusulas deste tipo existirem desde há muito, recuando às primeiras décadas do século passado, na sequência do escândalo que envolveu a estrela do cinema mudo Fatty Arbuckle, acusado de violar e matar a actriz Virginia Rappe — Arbuckle seria ilibado, mas a sua carreira não mais recuperaria —, a sua inclusão nos contratos para edição generalizou-se com a chegada do movimento #MeToo.
A muito aguardada biografia de Philip Roth — Blake Bailey fora, afinal, escolhido pelo próprio Roth para a função — estava há poucas semanas nas livrarias americanas quando o escritor foi acusado por várias mulheres de assédio e abuso sexual. Os alegados crimes terão ocorrido nos anos 1990, quando Bailey era professor na Lusher Middle School, em Nova Orleães, onde as acusadoras eram então alunas. Na sequência das denúncias, a WW Norton retirou do mercado a biografia de Roth e também um livro de memórias anterior de Bailey, The Splendid Things We Planned. Anunciou igualmente que iria doar aquilo que pagou de avanço ao biógrafo a associações de luta contra a violência sexual. A decisão só afectou o mercado americano, estando a biografia disponível em vários outros países.
Nova “casa"
Entretanto, foi anunciado esta segunda-feira que Philip Roth – The Biography encontrou nova casa editorial no país do seu autor. A obra será publicada nos Estados, dia 15 de Junho, pela Skyhorse Publishing, que também acolheu a autobiografia de Woody Allen, A propósito de Nada (lançada em Portugal pela Edições 70), após a Hachette, a sua editora original, ter decidido cancelar a publicação na sequência de protestos dos seus trabalhadores, devido às acusações de abuso sexual, por parte da filha adoptiva Dylan Farrow, que caem sobre o realizador.
Há dois anos, o Sindicato de Escritores americano publicou um comunicado em que acusava as cláusulas de moralidade, que as editoras consideram um instrumento essencial de protecção, de serem tão amplas que permitem a rescisão de um contrato e, em alguns casos, até a devolução do avanço dado aos escritores, “baseando-se em acusações individuais ou na noção indefinida de condenação pública, o que pode acontecer com bastante facilidade nestes tempos de redes sociais virais”. Segundo escreve o El País, mesmo declarações que os editores considerem polémicas podem ser invocadas para accionar a cláusula.
Para a escritora e crítica literária Francine Prose, a questão não é moral, mas sim financeira. “Na verdade, estas novas disposições têm pouco a ver com a moral. Trata-se, antes, de proteger as costas das editoras perante um possível prejuízo económico, dado que, se um autor é assinalado e ‘cancelado’ nas redes, o seu livro pode tornar-se tóxico”, afirmou ao diário espanhol.