Fotografia
Refugiados: o “sonho europeu” continua a ser um pesadelo
"Vi pessoas a afogar-se no Mediterrâneo. Vi famílias com crianças a rastejar por debaixo de arame farpado." Ao longo de seis anos, o fotojornalista dinamarquês Jacob Ehrbrahn realizou 19 viagens por sete países, onde acompanhou o quotidiano de migrantes e refugiados que "vivem, na Europa, em condições desumanas". A Dream of Europe é um documento histórico, um murro no estômago, um apelo à razão e compaixão de políticos e cidadãos europeus.
Em 2015, de acordo com dados da Agência das Nações Unidas para os Refugiados, mais de um milhão de pessoas, migrantes e refugiados, oriundos de países de África e do Médio Oriente, rumaram à Europa em busca de uma vida melhor, longe da pobreza, da opressão política e do conflito armado. 3771 pessoas, dadas como mortas ou desaparecidas, nunca chegaram a pisar solo europeu. "Nessa altura, os média falavam sobre este tema ininterruptamente", observa o fotojornalista do diário nacional dinamarquês Politiken Jacob Ehrbahn em entrevista telefónica ao P3, a partir de Copenhaga. "Depois desse ano, as pessoas perderam progressivamente o interesse."
Ehrbahn, porém, continuou a acompanhar de perto a situação. Entre Abril de 2015 e Dezembro de 2020, realizou 19 viagens a vários países – na Europa, visitou a Grécia, a Sérvia, a Hungria, a Croácia, França e Suécia e, na Ásia, a Turquia –, onde acompanhou o quotidiano de migrantes e refugiados em "acampamentos das Nações Unidas, debaixo de viadutos de auto-estradas, no interior de fábricas abandonadas, junto às linhas de fronteira, onde vivem em condições desumanas". As 12 imagens que partilha, agora, com o P3 fazem parte do livro que resultou dessa longa jornada, intitulado A Dream of Europe, que contém mais de 160 fotografias que retratam um flagelo que está longe de uma resolução.
"E se a criança que vês nas imagens fosse a tua filha? E se aquela mulher fosse a tua mãe?" A perspectiva de Ehrbahn é unicamente "humanista", adjectiva. "Eu sou pai e se o meu filho viajasse para um país estrangeiro gostaria que fosse recebido com bondade, com humanidade." Não foi isso que testemunhou, ao longo das suas viagens. “Vi pessoas a afogar-se no Mediterrâneo", escreve o fotógrafo na introdução do livro. "Vi famílias em lágrimas, a gritar de alegria, ao chegar a Lesbos num frágil barco de borracha. Vi centros de recepção de refugiados e 'selvas' a abarrotar nas ilhas de Samos e Lesbos, onde as pessoas vivem com as suas crianças em condições sub-humanas. Vi gente a rezar aos seus deuses em edifícios industriais ao abandono. Vi moços e homens a esconderem-se no interior de camiões de carga e debaixo de assentos de comboios para poderem cruzar fronteiras entre países europeus. Vi famílias com crianças a rastejar por debaixo de arame farpado. Vi traficantes a cobrarem quantias exorbitantes por quase nada." Viu gente a ser espancada por polícia fronteiriça. Viu famílias tentando escapar do campo de Moria com os seus poucos pertences, enquanto as chamas consumiam as frágeis tendas que faziam de casas. "Vi muita coisa, mas estive longe de ver tudo", conclui.
Nenhum decisor político pode afirmar, hoje, que desconhece o que se passa com este grupo de pessoas. "Mas nada acontece", lamenta o dinamarquês. "Cada Estado-membro da União Europeia define as suas próprias regras, ergue os próprios muros. Não existe, sobretudo, uma política baseada na solidariedade. Pagamos à Turquia e à Líbia para conter as torrentes migratórias, para manter as pessoas fora do território europeu. Mas as pessoas continuam a chegar, a cruzar território e, na maioria dos casos, a serem deportadas." A pandemia, afirma, veio silenciar o problema. "Aliás, a covid-19 tomou conta de toda a agenda noticiosa. O lançamento deste livro é importante, agora, porque as pessoas precisam de ver e perceber que tudo isto continua a acontecer, mesmo que seja menos noticiado."
No ano de 2020, mesmo com surgimento da pandemia, 95 031 migrantes e refugiados entraram na Europa, de acordo com dados das Nações Unidas – o que equivale a uma redução de 90,8% face a 2015, o ano em que se registou maior número de entradas. Em 2015, morreram durante a travessia, por mar ou por terra, 3771 pessoas; em 2020, perderam-se 1401 vidas – ou seja, verificou-se um decréscimo de apenas 63%, o que pode indiciar menor esforço e investimento no resgate e salvamento. "É importante lembrar que, por detrás de decisões políticas, números e estatísticas, há pessoas reais que nutrem sonhos e esperança no futuro", afirma. E recorda o caso da menina síria que conheceu, em Março de 2020, no campo de refugiados de Moria, em Lesbos, na Grécia. "Zaynab tem cinco anos e perdeu a mãe num bombardeamento em Idlib quando tinha apenas meses de idade. Vivia sozinha com os avós em Moria há três meses quando a conheci. O seu pai conseguiu chegar à Alemanha, onde aguarda a chegada da família." Qual o futuro de Zaynab?, questiona Ehrbahn.
"Quando tentamos projectar o futuro destas pessoas, que foram e são continuamente tratadas como um problema, que recebem tanta atenção negativa, o que conseguimos ver?" No campo de refugiados de Moria, em Lesbos, que entretanto ardeu, 40% dos residentes são crianças. "De acordo com os Médicos Sem Fronteiras, a maioria sofre de ansiedade, tem comportamentos autodestrutivos e está a tornar-se socialmente inadaptada", revela Ehrbahn nas páginas do livro. Compreende porquê. Durante duas semanas, o fotógrafo acompanhou uma equipa de resgate de uma organização não-governamental no Mediterrâneo. Aquilo que viu jamais irá esquecer. "Ver gente a afogar-se é uma memória que nunca desaparece." Muitas das crianças que chegaram em botes de borracha à Europa terão essa mesma memória gravada.
Jacob Ehrbahn considera muito importante relevar todo o esforço de organizações civis no sentido de dar apoio a esta franja da população. "Tenho o mais profundo respeito por quem dedica parte da sua vida a garantir que estas pessoas recebem refeições e algum tipo de apoio, afecto, solidariedade. São muitos milhares, por toda a Europa. Esse é o lado B desta crise: é a bondade dos cidadãos que permite que muitas pessoas sobrevivam." E recorda o acampamento que visitou, no centro de Paris, composto por mais de 800 tendas, onde vivem milhares de migrantes e refugiados. "A polícia francesa passa por lá, periodicamente, e manda dispersar. Obriga as pessoas a desmontar as tendas e destrói aquelas que não são desmontadas, assim como os pertences que estão no interior. É suposto que estas pessoas simplesmente desapareçam. Mas elas desaparecem para onde?" O acampamento ressurge, quase sempre, horas depois, poucos metros ao largo do local ou no próprio local. "Isto acontece no coração da Europa."
Existe, para o multipremiado fotojornalista dinamarquês, um desfasamento entre a ideia de ser europeu e o que significa, efectivamente, sê-lo. "Gostamos de ver-nos como primeiro mundo, como sendo mais humanistas, como tendo mais respeito pelos direitos humanos. Mas o que é que vemos, na realidade?" Não deseja, porém, alimentar a fogueira da polarização política e social que já assume dimensões preocupantes em todo o mundo, sublinha. "Este não é um documento político ou politizado. É um documento histórico, meramente. Acredito que existe bondade em todos os seres humanos, seja qual for a sua simpatia política. E é essa bondade que desejo ver despertar em todos os que vêem as imagens do fotolivro."