Autonomia dos ultra-ortodoxos questionada depois da pior catástrofe civil em Israel
Autoridades anunciam abertura de investigação à morte de 45 pessoas, incluindo dez menores, esmagadas por uma multidão numa festividade religiosa no Monte Meron, na Galileia.
As autoridades israelitas anunciaram a abertura de um inquérito à morte de 45 pessoas no Monte Meron, na semana passada, no que é considerada a maior tragédia civil em Israel. A concentração de demasiadas pessoas e o pânico da multidão levou a estas mortes, e um coro de vozes pede que seja investigada a responsabilidade, incluindo de políticos, sobretudo do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, que tem uma aliança com partidos ultra-ortodoxos.
No diário israelita Haaretz, Anshel Pfeffer, que é um dos jornalistas que cobre questões relacionadas com a comunidade ultra-ortodoxa, diz que “há anos que há avisos” sobre o potencial perigo das celebrações no Monte Meron, onde esta sepultado um rabino do século II.
O tema da posição dos ultra-ortodoxos na sociedade israelita tem sido analisado ciclicamente. O maior número de filhos faz com que a sua percentagem na sociedade venha a aumentar (são quase 13%, nos anos 1980 representavam apenas 4% do total da população), e a isenção de cumprir o serviço militar obrigatório se tenha tornado num problema.
O facto de viverem num mundo com pouca informação (sem televisão, sem Internet, por exemplo) e em que a tradição, ou a palavra do rabino, vale mais do que a do Governo, e onde a ciência é relativizada, foi sublinhado como potencial perigo durante a pandemia. O Governo permitiu ainda que a comunidade mantivesse actividades que não foram permitidas ao resto dos habitantes de Israel. Temeu-se ainda o que diriam os rabinos sobre as vacinas contra a covid-19, e fizeram-se campanhas especiais para a comunidade.
Agora, a morte de 45 pessoas, incluindo dez menores, deu um novo peso à questão da chamada “autonomia dos ultra-ortodoxos”. As festividades no Monte Meron tinham já sido classificadas como “perigosas” pelo organismo que supervisiona o Governo, por juntarem demasiadas pessoas num local estreito e de acesso difícil.
Mas no final da semana passada, juntaram-se mais de 100 mil homens e rapazes ultra-ortodoxos no local – dez vezes mais do que o número recomendado pelas autoridades (as mulheres celebravam num espaço diferente). Algo provocou pânico e uma corrida às saídas, algumas pessoas escorregaram nos degraus íngremes do acesso.
O organismo de supervisão vai agora “investigar as circunstâncias que levaram a esta tragédia”, segundo o anúncio do responsável Matanyahu Englman, feito após a observação de um dia de luto nacional, no domingo (o primeiro dia útil da semana em Israel). Isto acontece ainda quando está prestes a terminar o prazo para que Benjamin Netanyahu forme uma coligação de governo após as mais recentes eleições.
“Jornalistas e whistleblowers descobriram um rasto de avisos ignorados, recomendações rejeitadas e ausência de supervisão” antes do festival deste ano, diz o diário norte-americano Washington Post. O festival fora cancelado no ano anterior por causa da pandemia, e este ano grupos ultra-ortodoxos estavam determinados a celebrá-lo.
Embora, como diz o Washington Post, nenhum político personifique mais as cedências aos ultra-ortodoxos do que Netanyahu – a primeira queda de Governo, que precipitou a primeira de várias eleições inconclusivas dos últimos dois anos, deveu-se precisamente a uma cisão sobre o serviço militar dos ultra-ortodoxos, e foi também Netanyahu quem admitiu as excepções na comunidade às medidas de controlo da pandemia – é injusto culpá-lo só a si, diz Pfeffer no Haaretz: “a autonomia dos ultra-ortodoxos existe e foi reforçada por todos os Governos israelitas, sem excepção”, sublinha.
Isto criou um estado de coisas em que “há locais que estão fora da jurisdição da polícia e há autonomias sobre as quais o Estado nem sequer tenta afirmar a sua soberania”, sublinha.
Mas o descontentamento com medidas que existem por causa da comunidade ultra-ortodoxa e afecta o resto dos habitantes tem crescido – não só o serviço militar obrigatório, mas também a falta de transportes públicos no shabbat, e o facto de o Estado subsidiar uma parte muito substancial da comunidade para se dedicar ao estudo da Torah, o que faz dos ultra-ortodoxos o maior grupo em termos de beneficiários de apoios sociais do Estado.
Ao mesmo tempo, alguns grupos ultra-ortodoxos – fora de Israel mas também no país – vêem a criação do Estado hebraico como contrária à vontade divina, ou vêem o movimento sionista como demasiado secular, e recusam participar em tributos ao Estado.
Sondagens recentes mostram que o ressentimento está a crescer, com muitos a verem a comunidade ultra-ortodoxa como desligada, sexista, e anti-patriótica, segundo o Washington Post.