Teolinda Gersão e as sombras no escuro
Ao comemorar 40 anos de carreira literária, publica um livro diferente. Partiu de personagens reais, Freud e Thomas Mann, e leva-nos a visitar algumas sombras das suas biografias.
No ano em que comemora 40 anos de vida literária, Teolinda Gersão (n. 1940) publica um livro com três novelas — ou três histórias — que se interligam para que lhe possamos chamar romance. No seu anterior livro, a colectânea de narrativas Atrás da Porta e Outras Histórias (Porto Editora, 2019), as ambientações calmas, pelo menos na aparência, sucediam-se, mas deixando prever que por detrás de um quotidiano, de uma realidade apaziguada, existe outra coisa que os contos procuram. Nessas histórias, os narradores eram sabedores de que contar é sempre uma aproximação a qualquer coisa, que é um espreitar a partir de um ângulo mais ou menos inesperado, um entreabrir de uma porta, um afastar de cortinas, o espreitar por uma janela, o adivinhar de sombras no escuro. Em O Regresso de Júlia Mann a Paraty, o seu mais recente romance, é exactamente a esse exercício que a autora / narradora se dedica: a partir de cartas de dois grandes vultos da cultura alemã, Freud e Thomas Mann, e também da biografia de Júlia Mann (mãe de Thomas Mann), Teolinda Gersão tenta aprofundar a realidade para além do que ficou escrito, ao mesmo tempo que faz um retrato da Alemanha nos anos que precederam a Segunda Guerra — Freud está já exilado na sua casa de Londres, e doente —, e em que inclui um outro retrato (na história dedicada a Júlia Mann), mais estendido no tempo, o do papel e da condição social da mulher numa abastada família burguesa de industriais.
Na sua prosa sempre segura e clara, e muitas vezes subtil, Teolinda Gersão não se perde em malabarismos linguísticos e vai direita ao que pretende: aclarar as sombras deixadas nas cartas. Com uma visão perspicaz, e um conhecimento sobre a psicanálise e a obra literária de Thomas Mann adquirido ao longo de muitos anos, consegue levar o leitor ao conhecimento dos meandros da mente das personagens. A sua capacidade de invenção e de ficcionar não está ausente, conforme disse ao Ípsilon, mas se o escritor trabalhar “sobre personagens reais, não pode atraiçoá-las”.
Este é um livro diferente dos anteriores. Pelo lado biográfico de duas das maiores figuras da cultura alemã, Freud e Thomas Mann, mas sobretudo pelo trabalho de interpretação profunda do que os protagonistas deixaram escrito. Como é que lhe surgiu a ideia?
Como tenho formação germanista, conhecia bem a obra de Thomas Mann, e também a de Heinrich Mann, desde os tempos de estudante. Mais tarde, interessei-me pelo Dadaismo e Surrealismo e também por Freud e por [Carl] Jung, e li a obra de ambos sem aliás me filiar em nenhum. Mas verifiquei que a leitura dos psicanalistas podia abrir pistas interessantes para a interpretação das obras literárias. Quem tiver lido o ensaio que publiquei sobre O Mundo à minha procura, de Ruben A., ou Ninfas, ondas, sereias, melusinas, que escrevi para o prefácio da tradução portuguesa da Ondina, de Fouqué, compreenderá decerto o que acabei de afirmar. Mas a ideia de escrever este livro veio sobretudo da minha curiosidade pela personagem de Júlia Mann [mãe de Thomas Mann], sobre a qual, durante muito tempo, além da sua origem brasileira, pouco ou nada sabia. Tive vontade de procurar essa mulher na sua vida real, e escutar, da sua boca, o que ela tinha a dizer. Entre outras fontes, a pesquisa partiu da leitura das suas memórias, Da infância de Dôdô (nome que lhe davam em casa, ou ela, em criança, chamava a si própria), de pequenos textos literários que escreveu e de numerosas cartas. Li também a biografia da família Mann escrita pelo filho mais novo, Viktor, Éramos cinco, e ainda as Memórias não escritas de Katia Mann, mulher de Thomas.
O que encontrou em Júlia Mann?
Uma mulher extremamente dotada: nunca desejou ser escritora, embora apreciasse a leitura, tivesse enorme capacidade de se exprimir e chegasse a comentar livros ou pedaços dos livros dos filhos. Mas o seu grande talento era musical, como pianista e cantora, mais tarde aprenderia também violino, e quando jovem desejou ser actriz. Foi através dela que o talento artístico entrou na família Mann, que antes disso era constituída por empresários e comerciantes da burguesia mais abastada de Lübeck.
Teve, obviamente, de fazer mais investigação. Mas ao ler-se o livro, fica-se com a sensação que já há muito que pensa na relação entre psicanálise e literatura. A psicanálise foi para si um método de chegar ao texto literário, de o analisar. Como?
A relação entre a psicanálise e a literatura é um tema conhecido e estudado, pelo próprio Freud e também por Jung. Creio que a leitura dos grandes mestres da psicanálise estimula a capacidade literária de analisar um texto, entrando profundamente nele, sem o distorcer, mas sem deixar de ir até onde ele nos levar. Trata-se no fundo de descobrir, de forma rigorosa, e a partir de perspectivas possíveis, aquilo que o texto “diz”. No entanto não considero que, quando leio um texto, o faça de uma perspectiva psicanalítica. Sinto-me livre e ecléctica, mas é inegável que a cultura analítica está sempre presente. Um psicanalista “filiado” não interpretará decerto um texto com a mesma liberdade do crítico literário ou de um escritor. O que estou a tentar dizer é que encontrei, por exemplo, numerosos artigos de psicanalistas sobre a famosa carta que Freud escreveu a [Arthur] Schnitzler por ocasião dos seus 60 anos. A maior parte dos artigos refere a inveja confessada por Freud em relação aos escritores, por achar que eles descobrem, aparentemente com facilidade, por um golpe de intuição ou de talento, o que o cientista só atinge depois de um trabalho longo e penoso. A interpretação é, evidentemente, legítima, e é inegável que Freud a sublinha nessa carta. Em geral, é também comentada a semelhança entre o psicanalista e o escritor, na medida em que ambos se debruçam sobre a alma humana, o que só podem conseguir através do conhecimento prévio de si próprios.
O que implica da parte do escritor, de maneira quase inevitável, também uma espécie de auto-análise...
Freud fez, como se sabe, uma longa auto-análise e considera que Schnitzler também teria necessariamente de ter olhado sem medo para dentro de si para poder entender com tanta profundidade o mundo à sua volta. Outros artigos consideram, também justamente, que Freud, que, como também se sabe, se proclamava monogâmico e um homem de família, invejava o sucesso de Schnitzler com múltiplas amantes e o tipo de vida que ousou levar. Esta confissão não está explícita na carta, mas é legítimo convocá-la, porque sabemos que Freud se declarava fiel a Martha, mas se interessou, pelo menos intelectual e emocionalmente, por outras mulheres, e por vezes discute-se se a sedução foi ou não apenas imaginária. Na interpretação da carta a Schnitzler achei que se poderia arriscar mais. Na verdade, Freud contradiz-se. Começa por felicitar Schnitzler pelo seu aniversário, dizendo quanto o admira, e interroga-se por que razão, sendo ambos médicos e vivendo em Viena, nunca procurou um encontro pessoal com ele. E passa de imediato para um tom surpreendentemente íntimo, fazendo-lhe uma confissão que suplica que nunca revele, nem ao seu melhor amigo. Que nunca o procurou porque sempre o viu como seu duplo. Existe a crença popular de que o encontro com o duplo significa a morte de quem o encontra. Portanto Freud, o cientista, não consegue impedir-se de confessar que não é imune à crendice popular, e coloca essa revelação nas mãos de Schnitzler, pedindo — afinal a um desconhecido — o favor de guardar só para si esse segredo.
É um paradoxo...
Esta situação é paradoxal porque Freud colocava acima de tudo a sua reputação científica. Ele, que media com rigor as palavras, escreveria essa carta para felicitar o destinatário, cometendo de ânimo leve a imprudência de deixar nas mãos de um homem, que afinal nunca encontrou, a possibilidade de ele o destruir enquanto cientista. Não creio que esta interpretação faça sentido, apesar de a carta aparentemente o afirmar. Na minha perspectiva, o verdadeiro móbil da carta de Freud é o seu desejo da morte do destinatário. Se Schnitzler é o duplo de Freud, então também Freud é o duplo de Schnitzler. Ao ler a carta, o escritor encontrar-se-á frente a frente com o seu duplo, e é a sua morte que este lhe anuncia ou lhe traz. Imagino então — e aí estou só a imaginar — que esta interpretação não escapou a Freud — mas como poderia ter escapado? —, e que ele terá hesitado em enviar a missiva. Se finalmente acabou por fazê-lo, deduzi, foi por considerar que essa interpretação não ocorreria a Schnitzler, nem a qualquer outra pessoa. Se Schnitzler não guardasse a carta só para si, ele, Freud, teria argumentos racionais para se desdizer. Ao contrário dele próprio, Schnitzler não via, nem nunca vira, Freud como seu duplo, portanto a carta não podia ter esse sentido invejoso e malévolo. Freud acabou portanto por enviá-la, embora reconhecendo que colocara secretamente, por um instante, o instinto do prazer acima do princípio da realidade, como qualquer mortal.
Há no seu livro um trabalho profundo de interpretação mas sem nunca se desviar da realidade dos factos...
Considero que um escritor tem liberdade total de inventar, mas, se escrever sobre personagens reais, não pode atraiçoá-las. Neste caso, tem de haver uma investigação aprofundada, que permita encontrar alicerces credíveis, ou pelo menos plausíveis, para o que vai propor. Passou na Netflix a série Freud, em que tudo era delirantemente uma falsidade, além de estar cheia de erros factuais. Por exemplo, Freud nunca se encontrou com Schnitzler e Lou Salomé não tinha poderes hipnóticos nem sobrenaturais, era apenas uma mulher culta, inteligente e livre.
Em ambos os protagonistas, Freud e Mann, a psicanálise e a literatura surgem como caminhos para desvendar os nossos abismos. Escrever ficção, agora que a Teolinda Gersão comemora os 40 anos de carreira literária, foi também para si uma espécie de “auto-análise”?
A “auto-análise” do escritor é involuntária, acontece quer ele queira quer não. A escrita é sempre um caminho de conhecimento e de auto-conhecimento. De resto, sempre me interessei pelo inconsciente, como escrevi nos Cadernos.
[“Sempre achei que os sonhos eram narrativas-limite, literatura em estado puro. Muito antes de saber do surrealismo e de ter lido Freud, Jung ou qualquer outro. É talvez assim que todos caminhamos: entre o mundo onírico, onde aparentemente nada faz sentido, e o mundo não menos absurdo do que (nos) acontece”.], em Cadernos II, As Águas Livres (Sextante, 2013).
Os livros em que mais falo do meu mundo interior, sem que tenham, no entanto, pouco ou nada de biográfico, são os Cadernos, o primeiro dos quais saiu em 1984, com o título de Os Guarda-Chuvas Cintilantes, e o subtítulo provocador de Diário, porque é antes um “anti-diário”. Digo-o em As Águas Livres.
[”É um diário heterodoxo, porque quebra os dois pilares em que era suposto assentar, o eu e o tempo: o eu é um feixe de possibilidades e o tempo é arbitrário, recortado de um calendário impossível. Houve quem, apesar de tudo lhe chamasse romance. Julgo que poderia ser um romance ao contrário, sem uma história dentro, embora muitas histórias possam assomar à superfície para logo desaparecerem, porque não quero contar nenhuma, e onde não há um narrador, mas apenas as sombras que ele deixa na parede”], em As Águas Livres.
[O volume] As Águas Livres segue nessa linha de escrita onírica, ditada pelo inconsciente, em que há o Livro dos Sonhos, o Livro do Mar, o Livro do Vento. Não posso negar que o inconsciente me atrai, por isso os meus livros são muito diferentes uns dos outros, embora formem núcleos interligados, e haja uma grande coerência interna no conjunto.
Este é de facto um livro bastante diferente. As personagens são assumidamente reais...
O Regresso de Júlia Mann a Paraty foi a primeira vez em que escrevi sobre personagens reais. Foi uma experiência muito diferente das outras, com dificuldades específicas, e uma preparação de muitos anos, antes de imaginar que alguma vez iria escrever este livro. Mas considero que foi uma experiência compensadora e uma aposta ganha. Sempre gostei de não ter uma fórmula que se repete, e que o leitor já espera, porque lhe é já familiar. Comigo há sempre, da parte do leitor, um estranhamento. Mas, ao fim de 40 anos de vida literária, creio que os leitores se habituaram a adaptar-se à forma de cada novo livro, e também eu me tornei para eles familiar.
Julgo tê-la ouvido dizer, creio que na apresentação deste livro, que a vida do psicanalista difere da vida do escritor pela estabilidade do primeiro, que está quase sempre calado, a ouvir, e que o segundo é acometido de instabilidade no seu trabalho. A instabilidade, ou as instabilidades, são essenciais ao escritor?
Não creio que a diferença seja a estabilidade ou não, na verdade a estabilidade nunca existe. A grande diferença é que o psicanalista não pode ceder à tentação de se identificar com o analisado, porque nesse caso cairia fora do seu papel. Mantém-se necessariamente afastado, sempre marcando a distância, sentado noutra cadeira. O escritor, pelo contrário, pode mergulhar nas personagens e transformar-se nelas, calçar os seus sapatos e sentar-se na mesma cadeira. Por isso, embora com muitas semelhanças, são dois ofícios incompatíveis. A formação do analista é por natureza adversa à liberdade proteiforme, ou “mágica”, do escritor.
Algures no livro, ao pensar sobre Thomas Mann, Freud diz: “através de si, também estive a reflectir sobre mim próprio”. Essa é, para si, também uma das funções da literatura para o leitor?
Suponho que os leitores e os escritores têm a mesma relação com os livros: ou lhes interessam, ou não. Há “famílias” de escritores e de leitores. Como leitora, se um livro não me interessa, ponho-o de lado. Não se pode ler tudo, o leitor escolhe os livros que se abrem à sua frente como caminhos, que o chamam ou seduzem, ou que ele próprio gostaria de escrever, porque se identifica com eles. Há livros e autores que nos vão acompanhar ao longo da vida, outros de quem nos despedimos logo nas primeiras páginas. É uma questão de “química”, como nas relações humanas. A relação com os livros é uma relação humana, de pessoa a pessoa, de mundo interior a mundo interior.
Freud e Mann tinham muito em comum. Eram fascinados por mitos, de certa maneira também pelo oculto — apesar de a racionalidade de Freud não o deixar admitir — e pelas filosofias de Nietzsche e de Schopenhauer. Mas não se identificavam assim tanto um com o outro, parece-me, como no caso de Freud se identificar com Schnitzler. O que os unia era a inveja disfarçada de admiração?
Suponho que Thomas Mann pensou muito mais vezes na sua vida em Freud, do que o contrário. Thomas sentia-se por vezes muito isolado, escondendo a todo o custo a sua homossexualidade e vivendo na vida real uma “persona” que não era a sua. A sua tensão interior era decerto insuportável e teria provavelmente pensado muitas vezes como seria bom encontrar um confidente e um amigo à sua altura. Mas não creio que invejasse Freud, para quem, por múltiplas razões, a vida nunca foi fácil.
Freud, que reconhecidamente era autor de uma prosa límpida, coerente e concisa, ganhou o Prémio Goethe, foi várias vezes proposto para o Nobel, mas foi Thomas quem o ganhou. Inveja recíproca? Não sei. Todos os seres humanos por vezes se invejam, lutam por fama, poder, ascensão social e outras ilusões, são cruéis e mesquinhos como animais da selva. Por vezes mesmo inferiores aos animais. Freud preferia a companhia dos seus cães a qualquer outra. Mas os que deixam uma obra a gerações futuras talvez mereçam, apesar de tudo, mais compreensão pelo seu lado falível e “humano, demasiado humano”.