Presidente veta inseminação post mortem por causa das questões de heranças
Marcelo devolveu ao Parlamento o decreto “para que sejam designadamente reconsideradas as disposições relativas ao direito sucessório” e discorda dos seus efeitos retroactivos.
O Presidente da República vetou o decreto relativo à inseminação post mortem, devolvendo sem promulgação à Assembleia da República o diploma aprovado a 25 de Março com os votos favoráveis de PS, BE, PCP, PAN, PEV, IL e das duas deputadas não-inscritas.
Na origem deste veto estão as questões relacionadas com a herança, com o Presidente a recomendar ao Parlamento “que sejam designadamente reconsideradas as disposições relativas ao direito sucessório”. O texto que foi aprovado na Assembleia da República resultou de uma fusão de propostas de uma iniciativa popular de cidadãos, e de projectos de lei do PS, BE e PCP.
Na mensagem do veto, o chefe de Estado fundamenta a decisão com duas questões: a falta de articulação do regime constante no decreto com o do Código Civil, “o que pode gerar incerteza jurídica”; e também a aplicação retroactiva da lei, prevista numa norma transitória.
A questão da inseminação post mortem suscita, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, “questões no plano do direito sucessório que o decreto não prevê, uma vez que não é acompanhado da revisão, nem assegurada a sua articulação, com as disposições aplicáveis em sede do Código Civil, o que pode gerar incerteza jurídica, indesejável em matéria tão sensível”.
“É o caso de o dador querer, expressamente, manter o regime do Código Civil, em detrimento do consagrado no presente diploma, no quadro do superior interesse da criança – a criança conceptura ou nascitura, mas também outras crianças já nascidas do mesmo progenitor”.
O regime da inseminação post-mortem permite que até três anos após a morte do companheiro (e no mínimo seis meses após o falecimento), uma mulher viúva possa começar o tratamento para engravidar usando o sémen preservado do falecido desde que este tenha deixado declaração de permissão escrita, provando que havia uma intenção de “concretizar um projecto parental claramente esclarecido e consentido”. A esse prazo é preciso somar o tempo das tentativas para engravidar e levar uma gravidez até ao fim com nascimento de uma criança viva - e podem ser feitas até três tentativas.
O que significa que todo o processo pode demorar até cerca de cinco a seis anos após a morte do dador. E durante todo esse tempo a sua herança tem que permanecer indivisa, estipula o diploma que Marcelo agora vetou. O problema apontado pelo Presidente da República é jurídico-técnico: quando os deputados criaram esta regra sobre a herança do dador no texto do regime da procriação medicamente assistida (PMA) não a introduziram também no Código Civil, onde é regulado o direito sucessório, nem estipularam como é que se coadunam estas normas da lei da PMA com as do Código Civil.
Marcelo recusa aplicação retroactiva
A segunda objecção de Marcelo Rebelo de Sousa prende-se com os efeitos retroactivos previstos no decreto - o novo regime permite que nos primeiros três anos de aplicação da lei seja possível que mulheres que já perderam o companheiro quando a lei entrou em vigor engravidem com sémen que ficou preservado caso provem, mesmo sem declaração escrita feita pelo dador antes de morrer, que o casal tinha um projecto de concepção de um filho em comum. Diz o Presidente que, ao aplicar-se a situações que tenham acontecido antes da entrada em vigor da lei, não se consegue assegurar que o projecto parental tenha sido “livre, esclarecido, de forma expressa e por escrito, sem violação das disposições legais actualmente em vigor”. E mesmo que assim fosse, ficaria ainda por saber se esse projecto parental e o apuramento da existência desse projecto parental “inclui a vontade inequívoca de abranger os seus efeitos sucessórios”.
O diploma permitiria a uma mulher engravidar do marido já morto e do qual tivesse sido preservado sémen, mas também se aplicaria a mulheres que já são viúvas mas cujos companheiros tenham deixado material genético preservado. Só precisam de provar (mesmo que por testemunhas) que a concepção de um filho era um projecto parental comum, “claramente consentido e estabelecido”. A lei teve por base uma petição e uma iniciativa legislativa de cidadãos (ILC) da portuense Ângela Ferreira, com a ajuda do juiz desembargador Eurico Reis, antigo presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. Esta mulher pretende engravidar usando o sémen preservado do marido que morreu em 2019 quando ambos tentavam uma gravidez.
Permitir a retroactividade da lei durante três anos a partir da sua entrada em vigor foi a forma de encontrar solução para os casos pendentes, ou seja, de mulheres que já estão viúvas neste momento e que continuam a querer engravidar dos companheiros que deixaram sémen preservado, mesmo que não tenham deixado uma declaração escrita de autorização desse material genético depois da sua morte mas que possam, de alguma forma, provar que essa era a sua vontade enquanto casal.
Com esta lei, Portugal tornar-se-ia um dos primeiros países do mundo a permitir que uma mulher engravide usando o sémen do companheiro já morto. Aquilo que actualmente já é permitido é que uma mulher possa ser inseminada com embrião, sendo vedado o acesso ao uso do material genético apenas do companheiro.