A lição que nos vem do Brasil
O populismo justiceiro é um perigo grave para a democracia, alimentado pela corrupção e pela relação espúria, entre política e sector financeiro. As lições a tirar do caso brasileiro não passam pela abusiva colagem de Sócrates a Lula.
Circula, neste momento, no país, uma petição com 200 mil assinaturas a pedir a demissão do juiz Ivo Rosa. O seu primeiro subscritor é a mesma pessoa que fez uma petição contra Joacine Katar Moreira – por suposto ultraje à bandeira portuguesa. E, no entanto, tal não parece comover muitos.
Andam mal os que legitimam o discurso populista, confundindo o regime democrático com a corrupção. Esse foi o argumento para o golpe de 28 de Maio de 1926, que abriu caminho a uma ditadura de 48 anos.
A atual vaga populista começou após o megaprocesso Mãos Limpas, em Itália. Berlusconi foi eleito em resposta ao clamor anticorrupção da opinião pública, apesar de ser tão ou mais corrupto do que os políticos que denunciava.
Eu estava no Brasil quando se iniciou o megaprocesso Lava-Jato.
Em Curitiba, o juiz Moro assumia as vestes do acusador. A sua ação era apoiada amplamente, com grandes manifestações convocadas por organizações bem financiadas, onde eram exibidos balões gigantes com Lula vestido de presidiário e t-shirts com a inscrição In Moro We Trust. Moro inspirava-se na estratégia de mobilização da opinião pública seguida por Di Pietro, em Itália.
Em São Paulo, nos bairros da classe média alta, as noites eram marcadas pelos panelaços. Os órgãos de informação eram alimentados pelos procuradores, aconselhados por Moro. O alvo principal era o PT, acusado de ter abandonado a agenda ética que o levara ao poder. Políticos dos partidos de oposição pensaram que iriam ser os beneficiários do enfraquecimento do PT e da condenação de Lula. O resultado, porém, foi a eleição de Bolsonaro.
Sabemos que Moro, inebriado pela sua popularidade, sonhou ser Presidente, acabou ministro de Bolsonaro e que a Operação Lava-Jato, o megaprocesso que devia pôr termo à corrupção no Brasil, acabou por se fragilizar.
Em democracia, a opinião pública julga pelo voto e elege os deputados que fazem as leis. A justiça deve ser independente não só do poder executivo, mas também da pressão popular.
As ditaduras negam o direito à presunção da inocência, pedra basilar dos direitos humanos, e quem é considerado criminoso é humilhado na praça pública e condenado antes de ser julgado. O discurso da extrema-direita nas questões penais é de uma enorme barbaridade, de rutura com o humanismo jurídico-penal de que Portugal se orgulha. Ventura defende a prisão perpétua e a castração química, que afirma corresponder à vontade popular. O mesmo afirma a candidata do PSD à Câmara da Amadora, prova de que o discurso populista pode contaminar os partidos democráticos.
Aqueles que são considerados responsáveis pelas nossas misérias, são alvos de ódio e de um desejo de vingança que já não se exprime pelo linchamento, mas antes pela exigência de que seja satisfeito pelos tribunais.
A extrema-direita aparece como justiceira, mas a sua aversão ao sistema judicial e ao Estado de direito é a mesma quando está na oposição e quando está no poder.
No poder, a extrema-direita, não promove uma agenda anticorrupção, antes lidera um ataque à independência da Justiça, como se viu na Hungria ou na Polónia, apesar de o partido no poder se chamar “Verdade e Justiça”.
No Palácio do Planalto, Bolsonaro elege o Supremo Tribunal como inimigo e procura controlar o poder judiciário para proteger os seus filhos.
Em Portugal, a corrupção no tempo da ditadura era endémica, mas a censura e a falta de independência da justiça abafavam os crimes. Da imagem que Salazar divulgava de um país de “pobres, mas honestos”, só era verdadeiro o “país de pobres”.
O que a experiência brasileira mostra é que a pressão popular sobre a justiça resulta das omissões das instituições democráticas no combate à corrupção, e da legítima indignação dos cidadãos.
Um pouco por toda a parte, a expansão do neoliberalismo fez com que os partidos políticos ficassem demasiado dependentes do sector financeiro e das suas exigências - os paraísos fiscais são a prova disso. Não é por acaso que um banqueiro era conhecido como o ‘dono disto tudo’.
Assim, compete aos verdadeiros democratas exigir que governo e parlamento dotem o país do quadro legal necessário para dificultar a promiscuidade entre negócios e política, dando à justiça os meios necessários para se tornar muito mais célere e eficaz.
O Parlamento, em particular, tem de assumir um papel central no escrutínio dos políticos e do sector financeiro. Um bom exemplo do que pode e deve ser feito foi a comissão de inquérito do BES, que valeu a Mariana Mortágua o reconhecimento por parte de cidadãos de vários quadrantes políticos.
Entretanto, esperemos, serenamente, pelas decisões da justiça, que quanto ao julgamento político de Sócrates, esse há muito que está feito.