Bandidos
Um Estado degradado tropeça em si mesmo, confunde-se e confunde, não projecta e não protege. Torna-se incubador de corrupção, escola de bandidos.
Os bandidos (1847) é uma pouco estimada e pouco representada ópera de Verdi, com muitos assassinos e muitas mortes. Dizem alguns críticos que o assassinato primordial foi o da peça homónima (1781) de Schiller pelo libretista, opinião que partilho, desde logo pela mal-amanhada tradução vertida nos primeiros versos da ópera. Na prosa original, é esta a proclamação programática do personagem principal: “Enoja-me esta época manchada de tinta quando leio no meu Plutarco sobre grandes Homens.”
A tinta a que se referia Schiller era a das tipografias e o que ele visava com a crítica era o iluminismo – ou uma certa ideia de iluminismo, aniquilador da moralidade em nome da racionalidade absoluta. Como não recordar a metáfora quando, nestes dias digitalizados e assépticos, televisões e jornais nos enjoam até à náusea com a imagem de milhares de páginas manchadas de tinta depositadas, qual muro da vergonha, entre uma certa ideia de justiça e os espectadores-cidadãos?
O personagem principal do drama, Karl, filho primogénito do conde Moor, foi afastado ilegitimamente de casa pelo seu irmão Franz, e tornou-se líder de um bando de fora-da-lei. Os conflitos que esta dualidade de herdeiro privilegiado e foragido cria evidenciam a transversalidade social dos dispositivos de (des)legitimação e o nexo entre corrupção moral e material. O mesmo Karl que começa por afirmar, na taberna iniciática, “A lei degradou a passo de caracol o que teria sido voo de águia. A lei ainda não fez um grande homem, mas a liberdade incuba colossos”, acaba declarando que “ainda me resta algo com que posso reconciliar as leis ofendidas e curar a ordem abusada” – “eu sou o meu paraíso e o meu inferno”. Os bandidos, diz-nos Schiller e mostra-nos Verdi, nascem dentro do sistema (família, Estado), e podem ser simultaneamente vítimas e agentes da sua degradação. Mas nem todos, como Karl, adquirem consciência desse facto.
Os bandidos lusitanos, por exemplo, raramente vacilam na sua presunção de águias, mesmo quando rastejam na lama. Falta-lhes reflexividade. Esta patologia moral só pode ser compreendida no quadro social onde surge e se desenvolve. Ou seja, numa sociedade que não pratica e não incute nos seus membros a exigência permanente de auto-reflexão – uma sociedade pré-iluminista, desconfortável quando obrigada a confrontar-se racionalmente com categorias absolutas, mas confortável na convivência com absolutismos de pacotilha. Uma sociedade que consumiu o século XIX em guerra civil, inaugurou o século XX com a república para de seguida passar meio século fora da democracia e fora do mundo, e vive agora no marasmo económico (entre 2000 e 2020 o PIB per capita cresceu apenas 5,8%) e na degradação das instituições democráticas, neste ecossistema pantanoso profeticamente anunciado no alvor do século XXI. Uma sociedade que se mimetizou no mito de si própria, para melhor atrair turistas, fingindo, operaticamente, que é cor a dor que deveras sente.
A degradação do Estado é um facto. O Estado perdeu nobreza, no duplo sentido de ter perdido, politicamente, qualidades de relevância e eficiência, e de ter perdido, sociologicamente, os seus excelentes quadros e dirigentes (a “noblesse d’État”, como a nomeou Pierre Bourdieu). Um Estado degradado tropeça em si mesmo, confunde-se e confunde, não projecta e não protege. Torna-se incubador de corrupção, escola de bandidos.
A necessária higienização do Estado não se obtém através da repetição ritual de fórmulas vazias (“reforma do Estado”), nem deve ser confundida com um projecto de restauração do status quo ante, porque o Estado necessário, na era da digitalização e da urbanização, é descentralizado, municipalizado, construído em rede, assente na subsidiariedade. Estas qualidades, estes requisitos do Estado do século XXI, constituem, porém, outros tantos riscos de banditismo – a começar pela pirataria cibernética e a terminar nas “cortes na aldeia”. O estado actual do Estado e a complexidade das transformações por que terá que passar não auguram nada de bom quanto ao seu futuro, nomeadamente no que diz respeito à contenção da corrupção em níveis fisiológicos.
A sociedade portuguesa do século XXI, até agora, não gerou nem regenerou as instituições necessárias ao desenvolvimento sustentável, à justiça social e à repressão da corrupção. Seguramente, não por falta de capacidade, mas por falta de vontade. Ou melhor, pelo exercício da vontade de manter os mecanismos sociais dos nossos antepassados, sempre prontos a submeterem-se ao poder e sempre prontos a subtraírem-se à discussão pública (excepto na forma vulgar e improdutiva do insulto e das bengaladas mais ou menos metafóricas, durante décadas cultivada nos estúdios televisivos e hoje abundantemente presente nas redes sociais). Por muito “actuais” que sejam alguns debates na sociedade portuguesa, pantografados de outras latitudes culturais e imitados com hábil gesticulação, a sua densidade é insuficiente para encobrir o arcaico substrato e o défice de convicção dialógica.
Esta conservação atávica do passado é o acto fundador do banditismo primordial, isto é, do roubo desavergonhado das gerações futuras, condenadas a serem herdeiras, não só de uma colossal dívida pública, mas sobretudo de códigos e mecanismos obsoletos que perpetuam a injustiça (social e ambiental) e a ineficiência; incidentalmente, de um sistema de justiça incapaz de chamar bandido ao bandido. Por muito que custe aceitá-lo: os bandidos somos nós. De cada vez que um cidadão honesto transforma em direito opcional os imperativos morais de prestar contas e exigir a prestação de contas, de exprimir opiniões coerentes e exigir absoluta clareza e transparência na gestão da coisa pública, acolhendo com um encolher de ombros a circulação da superficialidade e da mentira no espaço público, suspendendo o exercício da auto-reflexão, ele tornou-se cúmplice da desonestidade.
Antecipo algumas críticas a esta tese. As famílias liberais dirão que o mal vem do Estado excessivo; reduza-se o perímetro do Estado e o seu peso e a sociedade reencontrará a vitalidade perdida, os cidadãos converter-se-ão instantaneamente às virtudes republicanas e à livre empresa, abjurando favores e subsídios. Oxalá tenham razão. As famílias socialistas dirão que este diagnóstico, centrado na auto-compreensão pré-política, ignora os mecanismos de opressão política característicos da sociedade capitalista. A eles recordo o comentário de Marx, no prefácio à Crítica da Economia Política, a propósito da decisão do editor não imprimir A ideologia alemã (por outras razões que não a falta de tinta...): “Deixámos o manuscrito à crítica corrosiva dos ratos com tanta mais boa vontade quanto tínhamos alcançado o nosso objectivo principal: a auto-compreensão”.