Capitalismo pós-carbónico, já!

Para poder ter sucesso, no curto e no médio prazo, a estratégia de reanimação da economia pós-pandemia precisa, antes de tudo o mais, de uma ideia mestra. Quanto mais simples, clara e transparente for essa ideia mestra, mais facilmente ela será compreendida, acolhida e seguida. A ideia que aqui se propõe pode ser resumida num slogan: capitalismo pós-carbónico, já!

Nos idos de Abril, a difusão viral do “já!”, nas paredes e nos discursos, manifestava as pressas de mudar e de mandar. Entretanto, a sociedade portuguesa metabolizou os tempos longos da democracia representativa e habituou-se aos ciclos de alternância no poder. Por outro lado, o envelhecimento da população molificou, não só o desejo ardente de antecipar utopias, como até a mera disposição reformista. Aos choques externos negativos (hoje a pandemia, ontem as crises financeiras), reage-se com dignidade e até com eficácia, mas o seu carácter de inevitabilidade catastrófica universal amplifica o conformismo e atenua a já débil inclinação à mudança. A aspiração irrealista e irrealizada do “já!”, redimensionada por sucessivas crises, foi substituída, no acto ilocutório, por aquele difuso “já agora”, expressão indefinida entre programática falta de convicção e pragmático oportunismo de sobrevivência adaptativa.

Já agora, falemos da crise do planeta (das alterações climáticas à perda da biodiversidade)... É preciso descarbonizar a economia “já!” – gritavam as jovens, no ano passado, às sextas-feiras –, mas custa acreditar que a (re)conversão instantânea da economia, a transformação radical planetária, apropriada à escala do desafio, possa ocorrer hoje ou nos próximos tempos. Algures, a meio deste século, será perceptível se a curva das emissões de gases de efeito de estufa vai achatar, como agora se diz, a propósito das infecções virais, a tempo de evitar o colapso, ou não.

Afirma um teólogo belga contemporâneo que a essência da fé não consiste em acreditar na possibilidade do milagre, mas sim no milagre da possibilidade. Não será certamente um milagre (a inversão repentina, “já!”, das políticas e dos comportamentos, individuais e colectivos, ou um golpe de geoengenharia) a salvar o planeta do excesso de gases de efeito de estufa, mas é possível salvá-lo, com a inteligência humana, do intelecto e do coração. Acreditemos na salvação da espécie.

A economia – e até a finança – estão a mudar. Em 2014, quando tive a honra de presidir à Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde, a promoção da mobilidade eléctrica foi vista, não por poucos, como uma fantasia inconsequente, inadequada a Portugal. Cinco anos volvidos, as vendas de veículos eléctricos e híbridos de passageiros “já” representaram 25% das vendas do diesel em Portugal – uma taxa ligeiramente abaixo da média UE (29%). Este mês, o presidente da Daimler publicou um artigo a anunciar que, até 2039, todos os veículos dessa marca, de passageiros e de mercadorias, serão neutros em carbono – isto é, o fim dos motores de combustão. Na última semana, pela primeira vez na história, produtores tiveram que pagar para que alguém comprasse um barril de petróleo. No final de 2019, a UE acordou uma inovadora “taxonomia de actividades sustentáveis” que irá guiar as políticas do BEI e de investidores privados. Et cetera. Não são mudanças súbitas, mas não deixam de ser mudanças significativas, constituindo, em conjunto, tendências claras.

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Os efeitos da covid-19 no ambiente: Múrcia, Espanha, a 29 de Fevereiro de 2020 (à esq.) e quarenta dias após o confinamento nacional, em 23 de Abril de 2020 (à dir.) EPA/MaARCIAL GUILLEN

As políticas públicas compõem-se de três ingredientes, chamados, na gíria, a cenoura (incentivos, subsídios,..), o bastão (leis, regulamentos, tributos,..) e o sermão. Em tempos pandémicos, proliferam sermões e prevalece o bastão superlativo (estado de emergência). A pós-pandemia não vai prescindir do sermão, mas vai substituir o bastão pela cenoura. Esta cenoura terá o tamanho de vários milhares de milhões de euros, dinheiro que o governo vai distribuir agora e que os contribuintes irão ter que pagar no futuro.

Recorde-se que, nos últimos anos, os contribuintes portugueses praticamente não investiram: 84% do investimento público em Portugal veio de fundos europeus (para comparação: Grécia 35%, Espanha 17%, Irlanda 3%). Agora, vai ser diferente. O dinheiro que o Governo vai distribuir, nas próximas semanas e nos próximos meses, em nome da recuperação económica pós-pandémica, não vai sair de Bruxelas, vai sair dos nossos bolsos. Razão suficiente para, democraticamente, exigirmos conhecer, antecipadamente, os critérios que serão adoptados nesta gigantesca redistribuição de riqueza.

A “cenourização” da economia é certa, mas a cenarização deste processo é coisa incerta. O mais provável, infelizmente, é a repetição da opera buffa a que se assiste de sete em sete anos, quando se trata de repartir, no rectângulo, os fundos europeus: substituição da concorrência no mercado pela concorrência para os subsídios; grupos de pressão organizados por geografia, por sector de actividade económica, por afinidade profissional, por afectividades várias; patronagem e arbitragem político-partidária; insuficiente exigência analítica na avaliação dos programas e das propostas, seguida de excessiva exigência contabilística na sua execução; etc..

Tendencialmente, mais auto-estrada, menos rotunda, esta é uma abordagem conservadora que visa manter estruturas económicas e sociais, satisfazendo desejos superficiais, de curto prazo, e não questiona seriamente o potencial de alavancagem dos investimentos. Também por estas razões, o produto interno bruto per capita português tem vindo a deslizar tristemente, neste século, e já vale menos de dois terços da média da UE, menos de três quartos de Espanha.

Entre este cenário preguiçoso e distópico do “business as usual”, que recusa ou minimiza o esforço de adaptação à mudança, garantido assim o sucesso consensual no curto prazo – e programando, inevitavelmente, o fracasso económico, social e ambiental no médio prazo , e um cenário voluntarista e utópico que exige a adaptação instantânea – “já!” – a um admirável mundo novo, sem carbono e sem exploração capitalista, condenado obviamente ao insucesso, por razões transcendentais (globalização normativa de facto) e imanentes (cf. primeiro parágrafo), é possível construir um cenário alternativo.

Para poder ter sucesso, no curto e no médio prazo, a estratégia de reanimação da economia pós-pandemia precisa, antes de tudo o mais, de uma ideia mestra. Quanto mais simples, clara e transparente for essa ideia mestra, mais facilmente ela será compreendida, acolhida e seguida. A ideia que aqui se propõe decorre de quanto acima exposto e pode ser resumida num slogan: capitalismo pós-carbónico, já!

Capitalismo está aqui a significar economia de mercado. De Pequim (economia socialista de mercado) a Washington (economia de mercado livre), passando por Berlim (economia social e ecológica de mercado), os mercados organizam as economias nacionais e as trocas internacionais. Mercado tem uma conotação mais neutra e civilizada, capitalismo uma carga mais hostil e brutal. Tecnicamente, são conceitos distintos, embora intimamente relacionados.

Escolher a palavra capitalismo é um truque de retórica: de uma penada, recorda-se que é neste sistema que vivemos hoje e continuaremos a viver amanhã, depois da pandemia, gostando ou não dele, usando ou não eufemismos para o nomear; e, ao provocar um estremeção de estranhamento na maioria dos interlocutores, estes são convidados a reflectir. O que é chocante nesta palavra: a sua obsolescência, o facto de ter caído em desuso após 1980? O legado social e cultural que a assombra? A sensação de que o capitalismo é imoral (o Papa Francisco acha que “esta economia mata” e Dahrendorf achava, em 1996, que o “capitalismo moral” iria talvez ser “o próximo passo do nosso desenvolvimento”)? Ou um vago sentimento de que este modelo, herdado do séc. XIX, não está ajustado aos desafios do séc. XXI, por razões simultaneamente técnicas, morais e culturais?

A observação, de 1999, em O novo espírito do capitalismo (L. Boltanski e E. Chiapello), segundo a qual a crise não é do capitalismo, mas sim da sua crítica, não perdeu actualidade. Uma crítica incapaz de analisar com originalidade as razões e as manifestações da actual dificuldade de transformação do capitalismo, em particular no que respeita à incorporação funcional do capital natural na equação económica, à assimilação de novos padrões morais garantes de maior justiça social e melhor democracia económica, à governança da economia digital e à mitigação dos riscos da financiarização da economia, é simplesmente improdutiva; uma crítica que tente explicar tudo isto demonizando a propriedade privada e recomendando nacionalizações, é um logro.

Em resumo: vivemos no regime capitalista, mas ele está a precisar de (mais) uma reforma profunda para sobreviver. Ele está já a adaptar-se à descarbonização. Se a reanimação da economia não se obtém matando o capitalismo (nacionalizações), ela também não se atinge com o encarniçamento terapêutico, tentando prolongar a vida de sectores condenados a desaparecer, nomeadamente por serem dependentes ou contribuintes do “cluster do carbono”. Portanto, o financiamento público deve ser dirigido sistematicamente para a substituição de processos de significativa intensidade carbónica, ajudando as famílias e as empresas a transitar para o pós-carbono e, ao mesmo tempo, ajudando as empresas que ajudam famílias e empresas na descarbonização, para que possam crescer em inovação, eficiência e dimensão.

Em muitos casos, nem é necessário desembolsar dinheiro público: basta a garantia do Estado para possibilitar investimentos privados cuja exequibilidade depende da garantia de solvabilidade dos clientes no longo prazo – por exemplo, reabilitar termicamente uma habitação privada, construir um parque fotovoltaico para abastecer uma instalação industrial, substituir o sistema de aquecimento de uma cadeia de hotéis ou hospitais, etc..

O dinheiro público poderia e deveria ser canalizado para a descarbonização da Administração Pública, dos edifícios às frotas (o que também contribuiria para a melhoria das condições de trabalho dos funcionários públicos), e para as infra-estruturas essenciais, por exemplo expandindo e electrificando o transporte ferroviário, marítimo e fluvial.

Portugal possui praticamente todos os recursos, naturais e humanos (investigação, indústria, serviços), para poder descarbonizar a sua economia “já!”, sem precisar da ajuda técnica e/ou financeira de qualquer troika. Um programa assumidamente capitalista pós-carbónico cria novos empregos, melhora a competitividade internacional das empresas portuguesas (ao permitir-lhes antecipar a descarbonização dos seus produtos face à concorrência e isentando-as de taxas de carbono nos países destino), aumenta a independência energética e a segurança do país, protege a economia nacional contra a volatilidade dos preços do petróleo e do carbono. Por último, mas acima de tudo: contribui para melhorar a qualidade de vida de todos.

Post Scriptum: por favor, reserve-se uma pequena raspa da cenoura para a digitalização da Administração Pública tem sido confrangedor ver funcionários e detentores de cargos públicos literalmente “aos papéis”. Não se pode gerir o Serviço Nacional de Saúde sem uma rede digitalizada de informação e sem procedimentos transparentes relativos à recolha, ao processamento, à classificação e à disponibilização da informação que – supostamente – serve de base às tomadas de decisão dos agentes responsáveis. Nem a saúde, nem os outros sectores.

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