Fernando Manso, pescador: “O stress do sofá fez mal à minha saúde”
Nove horas no mar de Sesimbra, treze homens a bordo e 3170 quilos de peixe capturado. Preço de venda do carapau: entre 1,40 e 1,80 euros o quilo. Preço de venda ao público, entre 5 e 8 euros. A cavala apanhada foi para isco, 80 cêntimos o quilo. Tudo somado, rendeu 3500 euros. Noite fraca para os pergaminhos do Mestre Manso.
Fernando Manso é filho e neto de pescadores. Não começou a vida na pesca porque o pai desejava-lhe outro rumo. Mas, aos 39 anos – e depois de ter sido funcionário público –, já era mestre encartado. A partir daqui, e ao lado do pai nos comandos da traineira Luís Adrião, começou a destacar-se pela audácia e pelo domínio das novas tecnologias a bordo. Quando assumiu o governo do barco, Fernando Manso foi, durante 17 anos, campeão da pesca do cerco em Sesimbra (concurso da Docapesca que premeia as embarcações que mais valor geram), um feito na comunidade piscatória da vila. Aos 59 anos, reformou-se.
No dia em que comemorou os 60 anos, 27 de Junho, comeu sardinhas grelhadas em casa. Saiu da mesa e sentou-se num sofá da sala, à conversa com a mulher, que geria as coisas na cozinha, para combinarem o que fariam para o jantar festivo com os filhos. Ideias para um lado, ideias para o outro, às tantas, a cadela Jack Russell começou a ladrar furiosamente, numa correria entre a sala e a cozinha. Ivone continuou a falar, mas sem obter réplica. A dada altura, irritada com o silêncio do marido e com os latidos da Big (a malta de Sesimbra tem a sua piada para arranjar nomes), entra na sala e dá com o marido recostado, imóvel e com a boca torta. Só a rápida chegada ao hospital controlou o AVC e evitou um conjunto de sequelas dramáticas.
Em tese, qualquer médico que acompanhe um paciente com AVC (e filho de um pai que sofreu mais do que um AVC no mar) recomenda-lhe paz e sossego. Mas, quatro meses depois da entrada no hospital, Fernando Manso baptizava uma traineira comprada no Algarve com o nome de Mestre Manso (em homenagem ao pai) e voltava à vida que o fez e faz feliz. “De medicina, não percebo nada, mas ninguém me tira da ideia que o stress do sofá fez mal à minha saúde. Falo por mim: acordar de manhã e ficar à procura de alguma coisa para fazer, isso causa-me stress”, diz o mestre a bordo da traineira em frente ao mar da Comporta, enquanto decide onde fazer o primeiro lance ao besugo. “Regressei, ando cá há quatro anos, com a minha saúde controlada, e sinto-me muito bem, mesmo com os altos e baixos da pesca.”
A Fugas passou uma noite no Mestre Manso para tentar perceber por que razão não há cavalas no mercado (não confundir sardas com cavalas). As respostas são variadas.
Apesar de a temporada forte da cavala ocorrer entre Agosto e Setembro, as águas frias desta altura serão, de acordo com Fernando Manso, uma justificação para o peixe não vir à superfície. No convés, cada pescador, de cigarro na boca, tem a sua tese: uns dizem que quando há muita sardinha – e as sondas da embarcação confirmam esse cenário – não há cavala. E vice-versa. Outros garantem a pés juntos que as espécies não gostam de se misturar. E outros ainda, com mais idade, recordam o ditado: “Cavala é peixe que dá e abala.”
Enquanto espreita a parafernália de instrumentos electrónicos a bordo, Fernando Manso rematará a conversa com um raciocínio que contraria as ideias feitas sobre os pescadores: “Estamos sempre a apanhar peixe e o peixe não se semeia, não é? De maneira que eu defendo a imposição de quotas para a cavala. Isso seria bom para o aumento do stock e para o aumento do preço em lota.”
Numa conversa com a Fugas, Cristina Nunes, investigadora do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, defende que, apesar de haver informação sobre a espécie desde os anos de 1980, “o estado real do stock da cavala na Península Ibérica, do ponto de vista formal, e avaliado a partir de modelos científicos que garantam a análise e evolução da espécie no tempo, é desconhecido”. Mas não deveria existir mais informação sobre esta espécie, pergunta-se. “Essa é uma questão que não me compete responder”, refere Cristina Nunes.
Para a cavala, e ao contrário do que acontece com a sardinha, por exemplo, não existe a definição de quotas, pelo que os pescadores podem capturar o que bem entendem, embora tenham de respeitar limites mínimos de tamanho. Mas o que é curioso nesta altura é que as cavalas descarregadas nos portos destinam-se não ao consumo humano, mas à isca para a frota da pesca do peixe-espada (as bogas vão para as artes de captura do polvo). Ou seja, é mais rentável ao pescador vender a cavala para isco do que vendê-la para consumo humano.
O caos controlado
Nos intervalos entre lances, a tripulação manifesta incompreensão por certas das regras da pesca, em particular aquela que obriga a atirar para o mar as sardinhas que entram na rede à mistura com as diferentes espécies e que ficam a agonizar e a boiar à superfície.
De resto, os treze homens funcionam como uma orquestra. Ao primeiro apito lançado pelo mestre cada um ocupa o seu posto. Esperam uns segundos e, com um novo som a imitar uma sirene, começa a azáfama que requer inúmeras repetições para percebermos quem faz o quê e como.
Quando o mestre decide a marca do lance, o primeiro a sair é o bote de apoio que arrasta a rede num raio específico para a ligar à proa da traineira. Numa noite sem lua, seguimos com o olhar a luz vermelha do bote algures no mar e, quando as ondas a escondem, o som que parece um leão a rugir diz-nos se a embarcação está a bombordo ou a estibordo. Tudo rápido, tudo coordenado. A rapidez, a orientação militar e a ordem de comando do mestre fazem da traineira um caos organizado.
Sons de máquinas e de homens com sotaque e expressões que só gente do mar percebe. Luzes que ora apontam para o interior da embarcação, ora para o mar. Roldanas e guindastes em movimento, tudo se transforma num ritual coreografado. A dada altura, e apesar da noite amena, um certo frio que nos percorre o corpo poderia ser resolvido com uma tarefa singela, nem que fosse puxar um cabo ou parte da rede. Qual quê. Ninguém nos quer a “empachar” (atrapalhar, em sesimbrense).
E assim ficamos com tempo para assistir às provocações entre os elementos da tripulação. Se alguém demora um décimo de segundo a mais a executar uma tarefa leva com o chorrilho de impropérios; se entra um tubarão na rede é uma algazarra a pedir cuidados redobrados; se um nó é imperfeito é uma humilhação e tanto. Mas, como dizia aquele almirante de língua solta que nos governou entre 1975 e 1976, “É só fumaça”. E é mesmo.
No final do lance, com os oleados despidos e algum silêncio no convés, a calma regressa. Ouvem-se as pancadas solidárias nas costas uns dos outros e regista-se a generosidade na partilha disto ou daquilo. E, claro, na véspera do penoso sermão de Ivo Rosa, lá se ouviram as apostas sobre o destino de José Sócrates e Ricardo Salgado.
Ao quarto lance de numa noite de pescaria fraca, Fernando Manso decide regressar ao porto, a uma hora e meia de caminho. Com a marcha em piloto automático, é altura de perguntar-lhe que características deve ter um mestre. “Isso é fácil de dizer, mas nem sempre fácil de fazer: deve arriscar, dominar as últimas novidades tecnológicas, mostrar credibilidade e ter capacidade de governar esta gente a bordo.” Calha bem esta última parte. Nota-se alguma tensão por aqui, comentamos nós. “Tensão? Viu como é que é trabalhar no mar? Esse ambiente é normal. A tensão faz parte, mas nunca se esqueça disto: as palavras ditas no mar não chegam a terra – ficam aqui.”