Profissionais da Cultura alertam para risco de aprovação prematura de estatuto

António Costa e Graça Fonseca anunciaram que o novo estatuto será aprovado no Conselho de Ministros de 22 de Abril. Associações do sector foram ao Parlamento reclamar que as medidas discutidas e apresentadas até agora estão ainda desadequadas da realidade.

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António Costa e Graça Fonseca no Teatro de São Carlos, em Lisboa LUSA/ANTÓNIO PEDRO SANTOS

Associações representativas de trabalhadores da Cultura alertaram esta sexta-feira o Parlamento para o risco de aprovação prematura do estatuto profissional do sector, anunciada para o Conselho de Ministros do próximo dia 22, pelo líder do Governo, António Costa.

A Acção Cooperativista, a Associação de Artistas Visuais em Portugal, a Plataforma Cívica Convergência pela Cultura e o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) foram ouvidos na comissão parlamentar de Cultura e Comunicação sobre o estatuto dos profissionais da Cultura, numa audição requerida pelo grupo parlamentar do PSD.

As quatro entidades foram unânimes em chamar a atenção para a aprovação prematura do estatuto, a verificar-se na próxima semana sem o debate de todas as suas componentes, alertaram para o risco de poder vir a reforçar a precariedade, sobretudo por não atender ao carácter de intermitência do trabalho no sector, sublinharam a falta do mapeamento das actividades existentes, que consideram essencial para sustentar as opções a definir, a falta de fiscalização, de meios para a fazer, e, entre outras lacunas, a necessidade de actualização dos códigos de actividade económica, em função da realidade, o que tem deixado profissionais fora dos apoios.

O peso dominante das artes do espectáculo no estatuto que o Governo tem em elaboração, por comparação com as artes visuais ou o subsector do património, foi também abordado pelas estruturas, que deram como exemplo especificidades das relações de trabalho em áreas que vão da arte contemporânea à arqueologia e ao universo dos museus.

Combater os falsos recibos verdes

O processo de definição de um estatuto do profissional da cultura teve início em Junho do ano passado, com a constituição de um grupo de trabalho para a sua criação, com representantes dos ministérios da Cultura, do Trabalho e da Segurança Social e das Finanças. Em algumas reuniões, têm vindo a ser ouvidos organismos públicos, associações e sindicatos, apenas como consultores e não como participantes desse núcleo de trabalho, como as entidades sublinharam esta sexta-feira.

No encontro com os deputados, os profissionais falaram da participação numa dessas reuniões, no passado dia 8, em que foram apresentadas “propostas concretas sobre novas regras e prestações para a protecção social”, que colocaram agora entre as suas preocupações. Foi o caso da falta de “propostas para o combate aos falsos recibos verdes”, inclusive em entidades públicas, e o agravamento da taxa contributiva.

A desadequação à realidade de algumas das medidas, como o subsídio de suspensão de actividade, que requer um tempo de paragem de três meses antes da concessão de qualquer apoio, foi um dos exemplos. Assim como a proposta de conversão de cachês em dias de trabalho, para acesso aos subsídios, que colocaria a estimativa de rendimento mensal líquido muito acima dos 600 euros obtidos por mais de metade dos trabalhadores, segundo o inquérito do Observatório Português das Actividades Culturais.

O representante do Cena-STE Rui Galveias disse aos deputados que “o problema começou logo no ponto de partida” de elaboração do estatuto, pela ausência de um rigoroso mapeamento do sector, que identificasse o universo de trabalho. “Não foi feito”. O estatuto padece assim de “um problema de fundo”, que é o de estar a ser construído em cima do “entulho da precariedade”.

O desconhecimento do sector e dos seus profissionais, que só agora começam a ser rastreados em profundidade pelos responsáveis governamentais, é um dos problemas de base, que resulta, essencialmente, do subfinanciamento da Cultura, praticado pelos diferentes governos, defendeu Galveias. As condições do estatuto têm de passar “por maior financiamento, mas também pelo acompanhamento e fiscalização do [seu] cumprimento e, evidentemente, pelo compromisso correspondente inscrito no Orçamento do Estado”. Para Rui Galveias, falta uma lógica “mais de concertação social”, “um trabalho de escuta mais lento” das entidades, uma vez que se está “a meio do processo”.

O ónus da precariedade

A actriz Catarina Requeijo, da Acção Cooperativista, uma estrutura surgida com a paralisação provocada pela pandemia, disse que o estatuto apresentado aos profissionais “não é a arma de combate à precariedade” de que estavam à espera, passando, pelo contrário, para o lado dos trabalhadores “o ónus de acabar” com ela. “Não reconhece a intermitência como inerente à profissão” e considera, à vez, a situação de trabalhador por conta de outrem e de trabalhador independente, quando a realidade é, muitas vezes, em “regime misto”.

Cláudia Galhós, também da Acção Cooperativista, lembrou que “este estatuto é uma carência de há décadas”, e que a “precariedade tem de ser combatida” e a “intermitência integrada”.

Situações de precariedade que deviam ser resolvidas “pelo próprio Governo” e por municípios, em entidades públicas ou em que o Estado tem representantes, foram enumeradas por vários participantes na sessão, como Rui Galveias, que citou os casos recentes da RTP, da Casa da Música e da Fundação de Serralves.

A realizadora Salomé Lamas, da Associação de Artistas Visuais, considerou “grave e precipitado” que a discussão sobre o estatuto termine no dia 22, e lamentou a falta de critério de entidades ouvidas, dando como exemplo a sua própria associação, nunca convidada para as reuniões. Com Gonçalo Pena, da mesma estrutura, Salomé Lamas alertou para o alheamento a especificidades de subsectores, e para problemas sistémicos nas artes visuais, marcadas pela informalidade, pela falta de regulamentação, num mercado muito limitado.

O actor André Gago, da Plataforma Convergência pela Cultura, também ausente das reuniões, lembrou que o processo de elaboração do estatuto teve início no ano passado no quadro das respostas de medidas de emergência, quando tinha “de ser uma resposta de fundo”, carecendo de transparência e verificação. “Deveríamos saber quem é que o faz”. “O sector é mais vasto, complexo e heterogéneo do que os responsáveis governamentais presumiam”, acrescentou André Gago, que reclamou mais tempo para a aprovação.

Luís Cunha, do Cena-STE, reforçou o pedido: “Pedimos três meses para que se pudesse ter a discussão que importa”, afirmou, mas tal foi recusado.

Estatuto em três partes

A proposta de estatuto de profissional da cultura levada às reuniões com as entidades está estruturada em três partes: a primeira, relativa ao registo dos trabalhadores; a segunda, aos contratos de trabalho; e a terceira, que agora se encontra em elaboração, relacionada com o regime contributivo e os apoios sociais.

Num comunicado divulgado esta quinta-feira, associações do sector afirmaram que “o Governo ainda vai a tempo de corrigir erros graves da sua proposta”. Subscrito pela Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas, a Associação Portuguesa de Realizadores, a Rede - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, a Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo e Ecarte XXI - Educação, Cultura e Arte para o Século XXI, além da Associação de Artistas Visuais em Portugal e da Acção Cooperativista, o comunicado reagia ao que o Governo tinha posto “em cima da mesa”, no encontro de 8 de Abril, com profissionais.

“Apesar de ainda não nos ter sido dada a conhecer a proposta completa, consideramos que devemos pronunciar-nos sobre o que está já em cima da mesa”, escreviam. A redução do prazo de garantia, para acesso à protecção no desemprego, para os trabalhadores por conta de outrem, foi saudada pelos profissionais, que, por outro lado, criticaram tudo o que se prende com a penalização da intermitência, como a necessidade de 180 dias de trabalho nos últimos 18 meses, em vez dos 24 meses que o Governo já tinha admitido, segundo as estruturas.

“Que mecanismos prevê o Governo criar para que, enfim, se realizem contratos de trabalho, e como irá impedir a continuação da prática generalizada da utilização dos falsos recibos verdes, quer em entidades públicas quer privadas?”, questionam as associações nesse comunicado.

Sobre medidas para a protecção social do trabalhador independente, as associações consideraram-se desiludidas: “Não prevemos qualquer adesão e eficácia”, à semelhança do regime dos contratos de trabalho dos profissionais de espectáculos, aprovado em 2008, a que faltou regulamentação, lembrado no Parlamento esta sexta-feira.

“Estamos conscientes de que o aumento da protecção requer um aumento da contribuição, contudo a proposta é altamente desproporcional [...]. O Governo propõe que a base de incidência contributiva passe a ser 100% do valor de cada recibo, quando actualmente é, no máximo, 70% do rendimento médio do último trimestre”. “Isto conjuga-se com o agravamento da taxa contributiva”, que passa de 21,4% para 25,2%. Quanto à taxa a pagar por parte das entidades contratantes, de 5,1%, também sobre 100% do valor dos recibos, nada garante que não seja em sacrifício dos cachês, disseram os profissionais na audição parlamentar.

A cobrança destes valores, segundo as medidas previstas, prevê acesso a um subsídio de cessação de actividade e a um novo subsídio de suspensão, a pagar pela Segurança Social. O primeiro, com um prazo de garantia de 360 dias em 24 meses, “impede o acesso à protecção social a muitas pessoas cuja natureza do trabalho é de projecto a projecto"; e, o segundo, com um prazo mais curto (180 dias nos últimos 18 meses), requer um período de paragem absoluta por três meses, sem qualquer rendimento. Assumem os profissionais que a medida não terá aplicabilidade, ou irá aumentar situações irregulares, como disseram agora no Parlamento.

Quanto à contagem de prazos de garantia para acesso aos subsídios, o Governo propõe uma conversão do valor dos cachês em dias de trabalho, que prevê um rendimento mensal de referência de 1.097 euros, quando o Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e Cultura, realizado pelo Observatório Português das Actividades Culturais, encomendado pelo Governo, revela que cerca de metade dos trabalhadores do sector tem um rendimento mensal líquido abaixo dos 600 euros, segundo dados de 2019, pré-pandemia. As associações defendem, por isso, a diminuição destes valores de referência.

“O Governo ainda está a tempo de construir uma proposta que realmente possa contribuir para garantir a protecção social de quem trabalha na cultura, que seja justa, válida e que não venha a ficar apenas na gaveta”, concluem as associações dos profissionais da Cultura.