O esplêndido isolamento de António Costa
Por muito que se critique António Costa por ser hoje o arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças políticas ou por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma indiscutível virtude: a de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um estado em que vale tudo, até ignorar a Constituição.
Seria de esperar que, perante o risco de um conflito com o Parlamento, o Presidente da República e uma parte importante da opinião pública, o primeiro-ministro gerisse a crise das três leis que alargam os apoios sociais como habitualmente: com tacticismo e paciência, até que a névoa se dissipasse. Não foi isso que António Costa fez. Pelo contrário, fez o mais difícil e contra-atacou. Mais: contra-atacou contra tudo e contra todos. O tempo dos equilíbrios precários obtidos com jeitinho e à última hora com a esquerda e com o beneplácito de Belém ficou suspenso. Só a certeza absoluta de que se encontra do lado da razão explica esta ousadia. Só um acórdão favorável do Tribunal Constitucional poderá reparar os riscos que comporta.
Já estávamos num território difícil. Nunca há uma solução a preto e branco quando há uma crise entre os princípios basilares do Estado de direito e necessidades urgentes de pessoas reais. António Costa colocou-se na defesa dos princípios substituindo-se ao Presidente, que tem como sua primeira missão cumprir e fazer cumprir a Constituição. Mas seria inocente acreditar que foi essa a sua única motivação. Costa apega-se à lei fundamental porque é esta que o protege de despesas avulsas que, ao porem em crise a norma-travão, corrompem as competências do poder executivo, transferindo-as para o poder legislativo. O conflito constitucional é fundamentalmente o cenário do conflito de poderes em curso do qual só Marcelo beneficia à partida.
Se há um demérito neste passo surpreendente do primeiro-ministro, há que o procurar na obsessão com o défice que levou o Governo a gastar menos 1000 milhões de euros em 2020 do que o previsto. Ou seja, num erro de cálculo anterior. Mas se há um mérito é o de garantir que numa democracia madura a lei impera sobre os expedientes e a Constituição prevalece sobre as manobras políticas, por mais nobres que sejam. É neste ponto que o pedido de fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional funciona a favor do regime e do país: perante dúvidas de violação da norma-travão, seria errado tapar os olhos e deixar correr o marfim.
Há um preço a pagar? Talvez. O diálogo parlamentar fica mais precário. A cooperação estratégica com o Presidente pode sofrer um forte abalo. A crise política pode juntar-se às outras crises. Mas, por muito que se critique António Costa por ser hoje o arauto da austeridade, por ser arrogante com as restantes forças políticas ou por ser ingrato com o Presidente, a sua decisão tem uma indiscutível virtude: a de não deixar que o estado de emergência dê lugar a um estado em que vale tudo, até ignorar a Constituição.