Constitucionalistas em coro criticam Marcelo por causa de apoios sociais (e Governo aproveita)
Depois de estudar cenários para impedir o avanço dos diplomas, o primeiro-ministro prepara-se para falar ao país. As críticas dos constitucionalistas deram nova força ao Governo (que não deita a toalha ao chão).
A promulgação dos três diplomas que aumentam os apoios sociais (e consecutivamente a despesa pública prevista no Orçamento do Estado) foi acompanhada de uma extensa mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa, mas não foi o suficiente para convencer o Governo a encerrar o assunto. Nesta quarta-feira à tarde, o primeiro-ministro, António Costa, prevê falar ao país para anunciar a conclusão a que o Governo chegou depois de reflectir sobre a mensagem presidencial.
Embora tenha agradado à oposição, a decisão do Presidente da República suscitou as críticas de vários constitucionalistas. Nos últimos dias, vários especialistas criticaram a promulgação destes diplomas, defendendo que a decisão de Marcelo viola a norma-travão ao permitir o aumento da despesa prevista e o desequilíbrio orçamental.
Na base da discórdia está a publicação de três leis que visam estender os apoios a 100% aos pais em teletrabalho com filhos em casa, aumentar os apoios a trabalhadores independentes e aumentar a despesa com profissionais de saúde e que, segundo as contas do Governo, poderão implicar um aumento da despesa mensal em 40,4 milhões de euros (o que corresponde a um impacto anual a rondar os 250 milhões euros).
Marcelo “não foi prudente"
Em conversa com o PÚBLICO, o constitucionalista Pedro Bacelar Vasconcelos considera a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa menos “criativa”, como António Costa a apelidou, e mais “absurda”. Para o constitucionalista e deputado do PS, o Presidente da República “tinha a possibilidade de não promulgar e de, subsistindo alguma margem, a remeter ao Tribunal Constitucional e a decisão seria de acordo com o que o Tribunal Constitucional dissesse”. “Seria a decisão mais prudente”, acrescentou. Para Bacelar Vasconcelos, a opção de Marcelo prova que “não houve grande abundância de ponderações jurídico-constitucionais” pelo que “a decisão é puramente política” e “que se pautou por critérios de popularidade e não critério institucionais”.
Obrigação presidencial
O antigo juiz do Tribunal Constitucional Vital Moreira partilhou a sua opinião no blogue Causa Nossa. No texto, Vital Moreira escreve que, “em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional de um diploma (e no caso é mais do que dúvida…), é obrigação do Presidente suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da sua missão de fazer respeitar a Constituição”. O antigo juiz nota que o Governo “está obrigado a cumprir integralmente as leis, mesmo se inconstitucionais, enquanto elas não forem declaradas como tais pelo órgão competente”, e que por isso a decisão abre um precedente. “A partir de agora vai ser mais difícil ainda governar em minoria, visto que já nem sequer a despesa orçamentada é intocável”, considera.
Maiores dúvidas
Jorge Miranda é um dos constitucionalistas que acreditam que a luz verde dada por Marcelo Rebelo de Sousa aos diplomas viola a norma-travão (uma norma que proíbe a apresentação de projectos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração a leis que aumentem a despesa pública prevista no Orçamento do Estado). Em declarações ao Expresso, Jorge Miranda conta que tem “as maiores dúvidas” sobre a posição assumida pelo Presidente da República.
Não tem aplicação
Também os constitucionalistas Jorge Reis Novais e Paulo Otero consideraram que a argumentação de Marcelo é “curiosa” e “não tem aplicação”. À agência Lusa, Jorge Reis Novais, especialista em direito constitucional, acredita que Marcelo está apenas a “justificar uma decisão política” e que “não tem nenhum apoio constitucional”. Para Reis Novais, “a questão devia ter sido colocada ao Tribunal Constitucional”, e há dúvidas de que a fiscalização sucessiva tenha “efeitos práticos”. Da mesma forma, também Paulo Otero acredita que “pode haver um argumento de natureza política”, uma vez que se trata de “apoios sociais de tal forma importantes e que não envolvem aumento de despesas para o Estado”, pelo que “o diploma tem de entrar em vigor com toda a urgência possível”.
Desfigura Orçamento
No mesmo sentido, o constitucionalista Tiago Duarte defende que a promulgação de apoios sociais viola a Constituição e argumenta que não se pode “desfigurar um orçamento”. “Se os deputados não gostam da Constituição, têm o poder de a alterar. Enquanto a Constituição não for alterada, vigoram as regras que lá estão”, declarou, lembrando a intervenção do Parlamento no Orçamento do Estado.
Ficção constitucional
Professora da Direito Constitucional e Finanças Públicas da Universidade Católica, Maria de Oliveira Martins lembra que “a lei-travão é uma lei cega”, fala em “ficção constitucional” e diz que os argumentos jurídicos invocados pelo Presidente da República para justificar a promulgação “não são procedentes”, como disse à Rádio Renascença. “Nos termos da Constituição, a divisão de poderes é muito clara: o Governo faz o Orçamento e a Assembleia aprova. É esta divisão rígida de competências que não está a ser respeitada”, considera. Nos moldes em que foi aprovada, defende Maria de Oliveira Martins, se o Governo não pedir a sua fiscalização sucessiva, vai ter de aplicar a lei de acordo com toda a dimensão e impacto orçamental que a mesma acrescente.