“Justiça para todos”, vantagens para alguns

Um instrumento jurídico de base constitucional, aqui usado sob o lema “Justiça para Todos”, pode passar a significar, muito simplesmente, descaradas vantagens para alguns.

Num país que não é conhecido pelo ativismo cívico das suas gentes, a associação de consumidores Ius Omnibus (‘IO’), cujo lema é “Justiça para Todos”, merece ser considerada um verdadeiro caso de estudo. Constituída por dois consumidores – um professor de direito e uma estagiária do respetivo escritório de advogados –, em março de 2020, precisou de apenas nove meses e poucos associados para preparar e apresentar em tribunal duas ações por infração das regras da concorrência, cujo valor total excede 800 milhões de euros. As indemnizações reclamadas em cada uma dessas ações contra, respetivamente, a Mastercard e a Super Bock, se vierem a ser decretadas pelo Tribunal da Concorrência, em Santarém, irão aumentar em 40 euros (80 no total) o património de cada um dos mais de dez milhões de portugueses, segundo a IO. É obra! 

Sendo eu presidente de uma ONG dedicada à defesa do património coletivo (ProPública – Direito e Cidadania), a coisa despertou-me alguma curiosidade. E fui investigar. Fiquei tão surpreendido com o que descobri que decidi escrever um artigo que o PÚBLICO teve a amabilidade de publicar: “Consumidores, advogados e abutres (ou serão anjos?)”. A IO aparentemente não gostou do meu texto. E, no uso do seu direito de resposta (edição de 9 de março), veio dizer que fiz insinuações ignorantes e inflamantes – seja lá o que isso for –, protestando a mais elevada lealdade à defesa dos consumidores, “por muito que isso possa incomodar os interesses económicos instalados”.

Para começo de conversa, devo dizer que nem eu nem a sociedade de advogados em que trabalho representa as empresas com interesse económico ou outro na defesa das ações intentadas pela IO. Também não conheço o advogado e professor de direito que teve a ideia de constituir esta associação-veículo. Mas levo muito a sério o interesse público, nomeadamente os direitos dos consumidores e o património coletivo (os tribunais são pagos pelos contribuintes) que todos – e, em particular, a associação ProPública – temos obrigação de defender.

O tema abordado foi o do financiamento destas ações judiciais por parte de terceiros (chamemos-lhes fundos abutre ou financiadores de contencioso, tanto faz) que nenhum interesse de ordem pública têm no objeto do processo ou na boa administração da justiça. O seu único interesse é ganhar dinheiro – e muito: por regra, 30% do valor da indemnização que vier a ser fixada pelo tribunal. Ora esta anomalia coloca várias questões sobremaneira relevantes, tanto no plano jurídico como no plano moral. Vou apontar apenas algumas: 1) não há lei em Portugal que regule esta atividade financeira, nem, que eu saiba, entidade reguladora com tutela sobre ela; 2) os acordos entre a IO, o advogado que a fundou e representa e o terceiro financiador podem ter criado um triplo e cruzado conflito de interesses; 3) a informação partilhada com o financiador – porque ninguém entra nestas coisas sem uma due diligence – quase inevitavelmente ofende princípios de sigilo profissional e comercial; 4) como as empresas demandadas nestes processos fazem frequentemente acordos extrajudiciais para se verem livres da publicidade negativa e, especialmente, da necessidade de constituírem provisões para cobrirem o risco de serem condenadas, o destino das ações dependerá fundamentalmente da decisão do financiador.

Não se percebe o que pode justificar as elevadas “despesas” dos processos, invocadas pela IO, sabendo-se que nas ações populares não há lugar a preparos iniciais, as custas são modestas e, segundo informação do portal Citius, a IO atribuiu a cada ação o valor de €60.000. Aliás, podia ter ocorrido a estes defensores dos consumidores uma solução de crowdfunding ou – porque não? – dirigirem-se a uma associação de créditos firmados, como a Deco ou a Acop.

Mas há outros e porventura mais graves problemas suscitados por uma lei em cuja redação o advogado e fundador da IO participou, aliás ativamente. Na verdade, se as empresas demandadas forem condenadas a pagar as indemnizações pedidas, caberá provavelmente à IO a gestão e pagamento destas. E quanto menos consumidores aparecerem a reclamar a sua quota parte, mais dinheiro haverá para as despesas da IO, seus financiadores e advogados. É o que diz a Lei 23/2018, de 25 de novembro (artigo 19), que veio permitir a utilização do instituto da ação popular nas ações de indemnização por infração às disposições do direito da concorrência. Mas fê-lo de maneira capciosa, desde logo porque retirou aos cidadãos individualmente considerados a legitimidade para intentar estas ações. Agora só certas “entidades”, como a IO, o podem fazer.

Suponho que, ao aprovar a lei, a Assembleia da República não conhecia os textos deste advogado e professor de direito sobre o sonho (“daring to dream”) da solução que agora lhe permite estar em tribunal através de uma ação popular que certamente aproveitará menos ao povo do que a ele próprio e aos terceiros financiadores. Mas o seu sonho é o pesadelo das muitas associações, designadamente de defesa do ambiente, que temem a possível descredibilização deste instrumento jurídico de base constitucional, aqui usado sob o lema Justiça para Todos, quando na verdade significa, muito simplesmente, descaradas vantagens para alguns.

Advogado. Presidente da associação ProPública – Direito e Cidadania

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção
Comentar