Será que dedicamos o mesmo tempo a pessoas brancas e negras?
O tempo é um recurso socialmente valorizado. As pessoas investem o seu tempo nas atividades que lhes despertam maior interesse e nas pessoas que mais valorizam. Por exemplo, pessoas brancas investem mais tempo para formar impressões de pessoas brancas do que de negras. Este fenómeno pode ter consequências tão diversas como o tempo que se dedica numa entrevista de emprego a candidatos negros e brancos.
O tempo que dedicamos às tarefas de nossa vida quotidiana tem profundo significado psicológico. Mais do que isso, é uma importante chave interpretativa do comportamento social. A centralidade do tempo na vida social foi desde cedo apreendida pela mitologia grega. O deus Cronos teria o poder de controlar o tempo e reger os limites da finitude do destino do universo. Está em seu nome a origem da palavra “cronómetro” usada para designar o instrumento para medir o tempo.
A finitude da vida coloca em destaque uma das mais fundamentais características da nossa relação com o tempo: a escassez. De facto, o tempo é um recurso muito escasso que pode ser poupado, desperdiçado ou investido. O tempo é, assim, um recurso preciosíssimo. Investimos nas atividades que nos despertam maior interesse e nas pessoas que mais valorizamos. A sabedoria popular reconhece estas características. Um exemplo deste reconhecimento está na frase: “Não me estás a dar a atenção que mereço.” A palavra “atenção” funciona como sinónimo de tempo dedicado, como bem ilustra uma versão mais dramática: “Ocupas todo o teu tempo a trabalhar e não sobra nada para a família.” Numa versão mais comparativa, revela-se finalmente o significado psicossocial do tempo: “Estás a dar mais valor ao trabalho do que à família.”
Estes exemplos demonstram que as pessoas compreendem bem o sentido implícito do tempo que dedicam às outras pessoas. O tempo investido numa pessoa revela o quanto esta é valorizada. É neste sentido que o tempo pode ser compreendido como um valor social.
A analogia entre o tempo e o valor social remete-nos para um adágio popular cuja origem é atribuída a Benjamin Franklin, e que é reproduzido em várias culturas, provavelmente por ter sido internalizado no pensamento capitalista: “Tempo é dinheiro.” Esta analogia encontra-se muito bem ilustrada na literatura, como na fábula satírica O Vendedor de Tempo, do escritor catalão Fernando Trías de Bes. O papel estruturante do tempo está também presente nas relações de trabalho, nas quais a remuneração tem um equivalente em horas trabalhadas, pelo menos no recibo de vencimento, ainda que essa equivalência nem sempre esteja estabelecida de forma justa.
A investigação mais recente no domínio da Psicologia Social tem mostrado que o tempo vale mais do que dinheiro para organizar e dar sentido à nossa vida – por exemplo, uma consolidada linha de pesquisa sobre este tema tem revelado que as pessoas que preferem ter mais tempo a terem mais dinheiro revelam ser mais felizes do que as que preferem o tempo ao dinheiro. Na mesma linha, as pessoas que dedicam mais tempo do que dinheiro em atividades de voluntariado apresentam níveis mais elevados de bem-estar psicológico. Esse fenómeno tem uma tradução real em atividades da sociedade civil – por exemplo, a associação católica Graal criou, em Portugal, o Banco de Tempo para organizar ações dedicadas ao voluntariado que usa o “tempo — e não o euro — como moeda de troca”.
Sendo o tempo um recurso social, é provável que o seu investimento ocorra de forma seletiva, isto é, que o tempo que dedicamos a uma pessoa seja dependente do grupo social ao qual ela pertence. Esta possibilidade redimensiona o significado psicológico do tempo para as relações entre diferentes grupos sociais e torna o estudo sobre o seu investimento mais complexo, significativo e impactante.
Primeiras impressões
As primeiras impressões que formamos sobre pessoas que acabamos de conhecer são importantes para a qualidade das relações sociais futuras. Uma das questões fundamentais é saber se o tempo que investimos para formar uma impressão sobre uma pessoa depende de características que conseguimos identificar no primeiro olhar, como o sexo, a cor de pele ou outra informação que julgamos ser relevante. Sabemos que o tempo investido numa pessoa é motivado pelo quanto ela é socialmente valorizada.
No domínio da Psicologia Social sobre o nosso comportamento em grupos, uma longa linha de investigação tem mostrado que um dos principais critérios que usamos para atribuir valor a outras pessoas é a informação sobre os grupos sociais aos quais pertencem. Por sua vez, uma das características mais relevantes para a avaliação do valor social do grupo é a cor da pele dos seus membros.
Procuramos então saber se pessoas brancas investem mais tempo formando impressões sobre pessoas brancas do que sobre negras. Analisámos esta possibilidade num programa de investigação que dirigimos no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Os resultados foram publicados numa das mais importantes revistas científicas no domínio da Psicologia Social, a Personality and Social Psychology Bulletin. Ao longo de quatro experiências feitas em laboratórios de Psicologia, apresentámos a estudantes universitários portugueses e brasileiros várias fotografias de pessoas que eles não conheciam. Tomámos o cuidado de selecionar fotografias de pessoas que tinham sido avaliadas como equivalentes em vários aspetos importantes para a perceção de pessoas, como, por exemplo, expressão facial e atratividade física. A única diferença era a cor da pele das pessoas fotografadas: metade das fotografias era de pessoas brancas; a outra metade de pessoas negras.
Os resultados de todos os estudos mostraram que os participantes investiram mais tempo para formar impressões sobre pessoas brancas do que sobre negras. Chamámos este fenómeno de “enviesamento intergrupal no investimento de tempo”. Este fenómeno ocorreu igualmente em Portugal e no Brasil, deu-se tanto nos homens como nas mulheres e não se relacionou com a idade dos participantes.
De forma a tirarmos conclusões sobre o significado dos resultados que obtivemos, realizámos várias análises mais pormenorizadas.
Inicialmente, analisámos se o investimento seletivo do tempo refletia o desejo dos participantes de evitar exprimir opiniões preconceituosas, isto é, as respostas mais rápidas poderiam simplesmente indicar que os participantes tentaram evitar formar impressões negativas sobre as pessoas negras. As nossas análises mostraram que esta explicação não era adequada, pois o maior investimento do tempo na formação de impressões sobre pessoas brancas (vs pessoas negras) não foi motivado pelo desejo dos participantes de evitar formar impressões negativas.
Fizemos uma nova pergunta que consistiu em saber se o investimento seletivo do tempo poderia estar relacionado com a tendência para homogeneizarmos as pessoas de outros grupos, isto é, dado que os participantes eram estudantes universitários brancos, o menor investimento de tempo em pessoas negras poderia refletir a mera percepção de que estas pessoas são muito parecidas entre si. Neste caso, a impressão formada sobre uma pessoa negra teria sido generalizada para as outras pessoas negras, o que poderia ter facilitado o processo de formação das impressões sobre o grupo como um todo e, por esta razão, ter ocasionado respostas mais rápidas. Uma análise aprofundada dos resultados mostrou-nos que esta possibilidade também não era suficiente para explicar o investimento seletivo do tempo.
Finalmente, ponderámos se os resultados poderiam ser mais bem explicados pela hipótese do valor social do tempo, isto é, procurámos verificar se o investimento seletivo do tempo estava relacionado com o preconceito implícito contra pessoas negras e com o racismo biológico, avaliado a partir de crenças numa suposta hierarquia biológica entre os grupos humanos.
Os resultados foram elucidativos. Os participantes com maior preconceito racial implícito (i.e., que mostravam uma avaliação negativa da qual não tinham plena consciência) foram aqueles que mais tempo investiram para formar impressões sobre pessoas brancas do que sobre pessoas negras. Além disso, o investimento seletivo do tempo foi maior nas pessoas que acreditavam mais fortemente na existência de uma hierarquia biológica entre os grupos humanos (ver gráfico abaixo).
Assim, a explicação mais consistente para os nossos resultados foi a de que o investimento seletivo do tempo a favorecer pessoas brancas refletia uma forma particular de discriminação implícita e que, por ser implícita, poderia contribuir para reforçar as desigualdades sem que seu impacto social fosse facilmente percebido e sem que suscitasse autocrítica ou censura por parte de outros.
O impacto social do investimento seletivo do tempo
Os nossos estudos suscitaram-nos novas questões sobre os limites e alcance do investimento seletivo do tempo, especialmente porque esta seletividade pode ter consequências sociais significativas para a qualidade de vida de membros de grupos sociais minoritários, especialmente de pessoas negras. Pusemos a questão de saber se esse fenómeno ocorreria em contextos sociais mais diversos, como no domínio dos cuidados da saúde e da educação escolar. Para responder a estas questões, estamos a levar a cabo, no ICS-ULisboa, um programa de investigação intitulado Alcance e Significados do Enviesamento do Tempo em Relações Sociais Racializadas, o qual é financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
A investigação que dirigimos tem mostrado que o investimento seletivo do tempo ocorre em domínios sensíveis da vida social – por exemplo, estudos prévios já haviam mostrado que as entrevistas de candidatos brancos para um emprego demoram mais tempo do que as de candidatos negros, o que pode ser decisivo para os resultados da seleção. No domínio da saúde, os resultados de uma tese de doutoramento, cujos estudos foram realizados no Brasil, revelaram que as consultas médicas realizadas num centro de saúde a pacientes brancos eram mais demoradas do que as de negros.
Em Portugal, o programa de investigação questiona em que medida o investimento seletivo do tempo influencia a qualidade do atendimento oferecido a pessoas brancas e negras em vários contextos sociais. Resposta afirmativa para esta questão poderá contribuir para uma melhor compreensão da natureza, das causas e consequências de muitos processos discriminatórios implícitos e não conscientes, mas que podem produzir impactos sociais irreversíveis para a vida das pessoas negras, como é exemplo o investimento seletivo do tempo em contextos diversos, como no caso dos cuidados de saúde e na relação professor-aluno.
Psicólogo social, ICS-ULisboa e UFPB
A reflexão aqui apresentada e a investigação discutida são objeto de um projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia intitulado “Alcance e Significados do Enviesamento do Tempo em Relações Sociais Racializadas” (PTDC/PSI‐GER/30928/2017). Agradeço aos colegas que têm colaborado neste projeto, especialmente Jorge Vala, Leonel Garcia-Marques, Filipa Madeira, Emerson Do Bú, Paulo Nicola, Violeta Alarcão, Miguel Ramos e Pedro Candeias