Estados Unidos da América
Após décadas de discriminação racial, famílias negras em Chicago vão ser indemnizadas
Há algumas décadas, nos subúrbios de Evanston, em Chicago, Cordelia Clark fazia da cozinha um restaurante e do seu quintal um estacionamento para a empresa de táxis que geria, uma vez que os residentes negros não podiam ter nem arrendar lojas na cidade. Agora, Evanston tornou-se a primeira cidade dos Estados Unidos da América a oferecer compensações monetárias aos residentes afro-americanos cujas famílias sofreram repercussões danosas de décadas de práticas discriminatórias. “É altura de alguma coisa resultar do trabalho árduo que os afro-americanos encetaram nesta cidade, provando que devem ser tratados tal como todas as outras pessoas”, afirma a bisneta de Cordelia Clark, Delois Robinson, com 58 anos.
A abordagem inicial para atribuir as compensações é restrita e direccionada. A Câmara Municipal de Evanston, que já atribuiu 10 milhões de dólares (mais de oito milhões de euros) para a iniciativa ao longo de mais de uma década, votou, esta segunda-feira, 22 de Março, uma ronda de pagamentos iniciais de 400 mil dólares (cerca de 335 mil euros). A primeira fase vai atribuir 25 mil dólares (perto de 21 mil euros) a um pequeno número de residentes negros, elegíveis para reparações domésticas, prestações e hipotecas, num aceno simbólico às políticas habitacionais historicamente racistas da cidade.
O programa pode tornar-se um modelo para outras cidades e, até, estados que ainda se encontram indecisos sobre se devem ou não prosseguir com os próprios programas de compensações. O movimento nacional de atribuição de compensações a afro-americanos tem vindo a ganhar cada vez mais força, muito devido à consciencialização da desigualdade racial provocada pela morte de George Floyd e outros negros às mãos da polícia, em 2020.
No Congresso dos EUA, um projecto de lei que estabeleceria comissões de compensações nacionais para avaliar a ideia conseguiu o apoio de cerca de 170 membros da Câmara dos Representantes – todos democratas. O Presidente Joe Biden ainda não apoiou a legislação, mas deu o aval para a realização de um estudo sobre o tema. Os defensores do projecto pretendem influenciar a Casa Branca a tomar acções executivas, se o projecto de lei, como esperado, não passar num Senado dividido.
Outras cidades, como Chicago, Providence, Rhode Island, Burlington, Vermont, Asheville, e Amherst já lançaram iniciativas, embora nenhuma tenha alocado fundos específicos. A Califórnia passou um projecto de lei baseado na legislação federal e políticos de Nova Iorque e Maryland introduziram medidas similares.
Algumas instituições privadas também lançaram campanhas a favor das compensações. A Ordem Jesuíta de Padres Católicos prometeu, na semana passada, pagar 100 milhões de euros aos descendentes dos escravos que, um dia, a serviram. “As compensações são o tipo de política pública que aborda – e corrige – o racismo sistémico”, afirma Ron Daniels, supervisor do trabalho da National African American Reparations Comission, que ajudou a cidade de Evanston na criação da legislação.
O aspecto prático da implementação de programas de compensações, a nível nacional, é ainda um assunto em debate. Uma sondagem feita pela Reuters/Ipsos, em Junho de 2020, no expoente dos protestos de justiça racial, concluiu que apenas um em cada cinco inquiridos concordava que os EUA deveriam pagar compensações aos descendentes de escravos.
Alguns opositores à ideia equacionam se os contribuintes conseguiriam suportar o que poderia transformar-se em mil milhões - ou mesmo em biliões - de dólares. Outros questionam os critérios que seriam utilizados para escolher os cidadãos elegíveis, baseados em raça, ascendência ou provas de discriminação.
Em Evanston, os residentes afro-americanos estão elegíveis para o programa habitacional se os mesmos ou os ascendentes tiverem vivido na cidade entre 1919 e 1969, ou se conseguirem provar que sofreram algum tipo de discriminação devido às políticas da cidade. Se se registarem mais candidaturas do que os fundos alocados, os beneficiários vão ser escolhidos de forma aleatória.
Alguns residentes afro-americanos de Evanston consideraram a área de actuação e o tamanho do plano inadequados, sublinhando as dificuldades inerentes à concepção de um programa que nunca poderá compensar séculos de discriminação. Evanston, que alberga a Northwestern University, está localizada entre o sul de Chicago e os subúrbios de North Shore, ao longo do Lago Michigan. Cerca de 16% da população de 75 mil pessoas é negra.
Tal como no resto do país, os afro-americanos de Evanston sofreram de redlining, uma prática em que os bancos recusavam empréstimos com fins imobiliários em bairros predominantemente negros, o que impediu que os seus residentes tivessem uma casa em seu nome.
O impacto do racismo histórico e sistémico persiste, ainda hoje, na comunidade negra de Evanston. A 5th Ward, onde a bisavó de Delois Robinson geria dois negócios a partir de casa, é maioritariamente ocupada por residentes negros e sofre com infra-estruturas inferiores. “Nós estamos a tentar recuperar de centenas de anos de opressão e é muito difícil fazê-lo sem alguma ajuda”, diz Vanessa Johnson-McCoy, uma das residentes negras da cidade e agente imobiliária.
Os fundos da campanha provêm de um novo imposto sobre a marijuana recentemente legalizada, o que os apoiantes vêem particularmente adequado, considerando o quão devastadora tem sido a sua criminalização para as comunidades afro-americanas.
Um grupo de oposição às condições impostas para as compensações, o Evanston Rejects Racist Reparations, apontou que os pagamentos iniciais vão cobrir apenas 16 famílias. Também afirmam ser contra as restrições impostas, que permitem apenas o uso do dinheiro para necessidades habitacionais. “As verdadeiras compensações compensam-te – tu tens uma palavra a dizer naquilo que te compensa”, afirma Rose Cannon, um dos membros do grupo.
Os defensores nacionais da ideia afirmam que ver as compensações apenas como pagamentos em dinheiro é muito redutor. Há uma necessidade de políticas que combatam o racismo institucional, criador das desigualdades em primeiro lugar. “Estes vestígios precisam de ser resolvidos ou continuarão no futuro – não importa quantos programas de equidade entrem em vigor”, remata Kamm Howard, co-presidente da National Coalition of Blacks for Reparations in America.
Mesmo em cidades que apresentam recursos limitados, os governos locais podem ainda compensar a comunidade através da actualização dos currículos escolares, do melhoramento das condições de desenvolvimento de negócios, de oportunidades de habitação e de pedidos de desculpa pelo racismo presente nas políticas do passado, de acordo com Howard. A vereadora Robin Rue Simmons, negra e líder da iniciativa de Evanston, vê estas compensações como um primeiro passo muito importante. “Isto é sobre a nossa humanidade”, afirma, acrescentando: “Já não era sem tempo, e esse tempo é agora.”