Há lagos, canais e barragens que são “armadilhas ecológicas”

Estudo analisou impacto na biodiversidade em mais de 700 habitats artificiais de água doce em todo o mundo. Entre a identificação de refúgios e armadilhas, destaca-se o alerta para a necessidade de um reforço dos esforços de conservação nestes locais.

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Espécie rara de mexilhões de água num pequeno canal de cimento em Marrocos DR

Onde antes existia um ambiente natural o homem criou habitats artificiais como lagos, canais, barragens e arrozais que servem para satisfazer necessidades como a produção de electricidade ou de alimentos. Alguns destes locais tornam-se importantes refúgios para muitas espécies, mas outros acabam por se revelar perigosas “armadilhas ecológicas”. Uma equipa de investigadores liderada pelo biólogo Ronaldo Sousa, da Universidade do Minho, estudou o impacto destas estruturas na biodiversidade, mais especificamente nas espécies de mexilhões de água doce. O estudo, publicado na revista Global Change Biology, relata o resultado de uma análise a 228 espécies presentes em habitats artificiais em todo o mundo. Incluindo Portugal.

Ronaldo Sousa arrisca dizer que quando se analisa o impacto da gestão de estruturas como barragens, lagos e canais nas espécies que ali se instalam podem encontrar-se “tantos bons como maus exemplos”. O trabalho que coordenou e que envolveu mais de três dezenas de investigadores de todos os continentes, em mais de 20 países, focou-se no estudo de uma espécie seriamente ameaçada: o mexilhão de água doce. Entre os refúgios e armadilhas que viram um pouco por todo o mundo reforça-se a convicção: estes habitats artificiais devem ser também um foco de atenção para a conservação de espécies. Sobretudo numa altura em que os ecossistemas naturais são seriamente ameaçados.

“Os habitats artificiais de água doce podem tornar-se “armadilhas ecológicas” devido a gestão danosa ou falta de condições para certas espécies, sobretudo em áreas do planeta em que os habitats naturais foram reduzidos”, confirma o investigador Ronaldo Sousa. No artigo publicado agora, os autores constatam que a influência humana nos habitats de água doce “é agora omnipresente” e conseguiu alterar de forma muito marcada “a distribuição espacial e temporal das águas superficiais nas últimas décadas”.

Nem tudo é mau. Os chamados habitats artificiais ou antropogénicos (criados pela acção humana) podem imitar a condições naturais e funcionar com um refúgio para muitas espécies. Assim, Ronaldo Sousa admite que alguns dos “refúgios artificiais” podem ser suficientemente estáveis para acolher um grande número de espécie animais, desde invertebrados a vertebrados como peixes, anfíbios, aves e mamíferos.

Mas a má gestão destes lagos, barragens e canais, alerta o estudo, também pode ser fatal para outras tantas espécies e, por isso, outros habitats artificiais podem funcionar como “armadilhas ecológicas”. “As grandes barragens são altamente prejudiciais para animais que preferem viver em zonas de corrente, levando em alguns casos ao seu desaparecimento”, exemplifica Ronaldo Sousa. Mas há mais exemplos: no caso dos canais de rega, a ameaça surge nas alturas em que é preciso realizar trabalhos de manutenção e limpeza. Neste caso, a ameaça pode ser fatal para uma grande parte dos organismos seja por causa da retirada de sedimento ou do esvaziamento temporário.

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O investigador Ronaldo Sousa DR

A análise da equipa envolveu a recolha de uma amostra de 709 registos de habitats artificiais de todo o mundo, colonizados por 228 espécies de mexilhões de água doce, grupo de organismos altamente ameaçados. “A maioria dos exemplos inclui canais e barragens da Europa e América do Norte, sendo que um total de 34 espécies registadas são consideradas ameaçadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza”. “Compilámos 709 registos de mexilhões de água doce (Bivalvia, Unionida) que habitam uma grande variedade de tipos de habitat antropogénicos (desde pequenos lagos a grandes reservatórios e canais) e revimos a sua importância como refúgios para este grupo faunístico”, lê-se no artigo.

Uma investigação de 2016, liderada também por investigadores portugueses, concluiu que os mexilhões de água doce em toda a Europa estavam “fortemente ameaçados”, com 75% das espécies em risco”. Na lista das ameaças encontrava-se, entre outras, “as várias actividades humanas que resultam em perda e fragmentação do habitat”, a poluição, a exploração excessiva de recursos e mudanças na temperatura e regimes de caudais. A 4 de Março de 2020, o biólogo Ronaldo Sousa assinava um outro estudo publicado na revista Science of the Total Environment que já deixava o alerta: “As pequenas barragens estão a “fazer desaparecer” o mexilhão de água doce, uma espécie “criticamente ameaçada na Europa”.

Exemplos em Portugal

No caso específico do exame ao que se passa em Portugal, o novo artigo destaca que “há habitats artificiais colonizados, como canais de moinhos antigos com uma grande diversidade de organismos, incluindo o mexilhão de rio Margaritifera margaritifera, espécie criticamente ameaçada na Europa”. E há bons e maus exemplos. Uma das notas mais altas em termos de bom desempenho e gestão estará, por exemplo, na mini-hídrica de Mirandela, no rio Tua. Ali, os trabalhos de manutenção em 2018 incluíram a monitorização das populações de bivalves e peixes e os indivíduos que ficavam em risco eram conduzidos para águas mais profundas. Do lado menos feliz da acção do homem, realça-se que em 2017 durante os trabalhos de manutenção num açude em Vila Real, no rio Corgo, os animais morreram depois de terem sido deixados sem água. “Algo que poderia ter sido muito facilmente evitado”, nota Ronaldo Sousa.

O investigador admite que em alguns casos a protecção das espécies nestes habitats artificiais é propositada, mas noutros será ignorada. Em muitos casos, os gestores destas estruturas desconhecem mesmo que através de acções muito simples podem proteger espécies importantes que ali se instalaram. Ronaldo Sousa dá o exemplo de um caso descrito no artigo sobre um pequeno canal de rega em Marrocos onde se percebeu que existia uma espécie de mexilhão de água doce que está entre as 100 espécies mais ameaçados do mundo. “Bastou espalhar a mensagem e os agricultores passaram a ter outros cuidados quando faziam a limpeza dos canais.”

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Canal de cimento em Marrocos onde foi encontrada uma espécie rara de mexilhões de água doce DR

A investigação não se limita a apontar os pontos negros, falhas e sucessos na gestão destes habitats artificiais de água doce. “Discutimos a importância da conservação e fornecemos orientações sobre como estes habitats antropogénicos poderiam ser geridos de modo a proporcionar um valor de conservação óptimo aos mexilhões de água doce”, escrevem os autores do artigo. Sublinhando que o trabalho mostra que alguns destes habitats podem funcionar como armadilhas ecológicas devido a práticas de gestão conflituosas ou porque actuam como um sumidouro para algumas populações, a equipa internacional de cientistas conclui que “os habitats antropogénicos não devem ser vistos como uma panaceia para resolver problemas de conservação”.

E os especialistas concluem: “Embora defendamos que os ecossistemas naturais devem continuar a ser o foco principal da conservação do mexilhão de água doce, os habitats antropogénicos, embora tenham menos valor de conservação, também requerem atenção, especialmente quando os ecossistemas naturais já tenham sido amplamente reduzidos ou perturbados.” Ou seja, os esforços de conservação destas espécies que geralmente se centram nos habitats naturais serão também muito importantes nos locais modificados pelo homem.

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