A perda e o desconcerto
Quantas noites passou sem dormir, perturbada pelo insulto diário, o assédio constante, a persistente exposição à boçalidade que se julga sedutora e mais não é do que um exercício idiota e obsceno de machismo exibicionista?
Quantas vezes olhou por cima dos ombros, procurando identificar na penumbra a origem dos passos que a perseguiam? Ou será que nem deu por isso até ser demasiado tarde? Quantas vezes escapou a predadores com decisões conscientes ao desviar-se de um determinado caminho mais escuro, ao mudar de rua ou de passeio, ao não entrar num transporte público ou pura e simplesmente porque não se sentou num determinado lugar e o seu olhar não se cruzou com o do agressor? Quantas noites passou sem dormir, perturbada pelo insulto diário, o assédio constante, a persistente exposição à boçalidade que se julga sedutora e mais não é do que um exercício idiota e obsceno de machismo exibicionista? Alguma vez pensou que poderia ser ameaçada ou assassinada justamente por quem deveria estar na primeira linha para a defender e a proteger?
Não vamos saber as respostas a estas questões e a muitas outras. Porque Sarah Everard foi assassinada quando regressava a casa no trajecto entre Clapham e Brixton. Um agente policial foi indiciado pelo crime. A deputada Jess Philips leu no Parlamento os nomes de 118 mulheres assassinadas em 2020 no Reino Unido. Apetece perguntar por onde andava quem deveria tê-las protegido e defendido de todos os ataques?
Adaptemos Pessoa, mestre maior na arte da poesia: “Tão jovem!/que jovem era!/(Agora, que idade tem?)/Filha única, a mãe lhe dera/Um nome e o mantivera/‘A menina da sua mãe.’” Descrevem-na como “forte, alegre e bonita, gentil e amorosa”. Uma personalidade cativante, carinhosa, sempre disponível para ajudar, apoiar, dedicar-se ao outro nem que seja apenas para lhe estender a mão. Quantas pessoas assassinadas, sobretudo mulheres, porque são a esmagadora maioria das vítimas, cabem em descrições mais ou menos assim? Mas, e se a descrição for diferente desta, isso significa que alguém deve ser alvo de violência? A resposta é bem simples: não, a violência não é uma opção.
Henry Marsh, eminente neurocirurgião, tem escrito e reflectido sobre a sua profissão e acerca dos erros cometidos ao longo do caminho. Do No Harm (“Não Faças Mal” na tradução para português), é o título de um dos seus livros e princípio que o tem regido. Alguma vez a Humanidade será capaz de escolher este princípio como um dos valores maiores do seu dia a dia? Por que razão somos capazes dos actos mais admiráveis de solidariedade e empatia, mas, em simultâneo, das acções mais bárbaras e repugnantes?
Outro valor fundamental: não discriminar. Este domingo, além de ter sido o Dia Mundial da Poesia, foi também o Dia Nacional para a Eliminação da Discriminação Racial. Vai haver discussão pública a propósito de medidas para um plano nacional de combate ao racismo. Mas não falta por aí quem considere que não há racismo em Portugal, inclusive alguém que está sentado no Parlamento e sonha ser primeiro-ministro. Deve ser porque, quando olha à sua volta, vê bancadas plenas de diversidade e não uma esmagadora maioria branca. Ou porque a sociedade portuguesa está recheada de exemplos de lugares de chefia preenchidos por pessoas das mais variadas etnias. Talvez seja porque tivemos tantos casos de primeiros-ministros e chefes de Estado com essas características. Se calhar é porque nos bairros mais pobres, entre aqueles que têm pior nível salarial ou são vítimas da mais profunda desigualdade, a esmagadora maioria dos moradores é constituída por cidadãos com a pele clara. Mas, se nada do que enumerei é real, como classificar aquilo que disse?