Márcia conta Histórias da Bola para Adormecer e embala o amor ao futebol
Márcia Pacheco, actriz e apaixonada pelo futebol, gosta de “descobrir jogadas que fazem saltar da cadeira” de um estádio. Durante o confinamento de 2020 e a suspensão dos campeonatos, criou um podcast sobre memórias e emoções da bola e, com isso, chegou ao Canal 11. “Senti que era preciso regressar ao que liga as pessoas ao futebol.”
“Com o tempo acabei por assumir a minha identidade: não sou mais do que um mendigo de bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e suplico nos estádios:
- Uma boa jogada, pelo amor de Deus.
E quando o bom futebol acontece, agradeço o milagre sem que me interesse com que clube ou com que país me oferece.”
É assim que termina a confissão de Eduardo Galeano, no arranque de Futebol ao Sol e à Sombra, datado de 1995, editado em Portugal pela Antígona. E esta ideia, diz Márcia Pacheco, autora do podcast Histórias da Bola para Adormecer, resume a relação que tem com o futebol, desde criança: não importa o clube, a cor da camisola, o nome do estádio ou a liga em que o jogo acontece: “Quando chego ao estádio, quero sentir a emoção do público e descobrir jogadas que me fazem saltar da cadeira.” Mas recuemos à infância desta actriz, profissional de relações públicas, podcaster e, mais recentemente, apresentadora de televisão.
Aos fins-de-semana, o avô de Márcia Pacheco tinha um hábito comum a várias gerações de fãs do futebol: sentava-se no carro e ouvia os relatos dos jogos, durante horas sem fim. “Aquilo quase que o embalava, era só para relaxar”, recorda a neta. Um dia, durante o primeiro confinamento devido à pandemia de covid-19, em 2020, a imagem do avô a ouvir passes, remates e golos falhados para descontrair (algo quase inimaginável, tendo em conta o stress que estes relatos radiofónicos podem provocar) pareceu-lhe uma solução para contornar a ansiedade crescente. “Às tantas precisava de uma história da bola para adormecer, algo que me embalasse.” Estava criada a ideia para o primeiro podcast de Márcia, feito de memórias e disponível nas principais plataformas de distribuição.
Por ter uma doença auto-imune, a paredense de 31 anos não teve hipótese de se juntar aos pais, durante o confinamento (ambos continuaram a trabalhar), e, morando sozinha em Vila Nova de Gaia, viu-se a braços com um “problema emocional”. Perdeu “imenso trabalho”, como tantos profissionais ligados à cultura, e a ansiedade foi aumentando. Recolher histórias ligadas ao futebol, quando os campeonatos foram suspensos, permitiu-lhe matar saudades. “O futebol, às vezes, fica demasiado agressivo e eu senti que era preciso regressar a esse amor, ao que liga as pessoas ao futebol”, conta ao P3.
Começou por telefonar a alguns amigos e colegas que tinham jogado à bola, ávida por ouvir relatos dos melhores momentos, em campo e fora dele. Depois passou a apelos públicos no Facebook e no Twitter, desafios lançados a conhecidos e desconhecidos. E as histórias foram surgindo, durante o mês de Abril, tal como uma “comunidade de adeptos de todos os clubes”. “Só essa partilha, mesmo antes de gravar, já enchia os meus dias e fazia-me companhia.”
Grande parte das memórias que recebe na caixa de email são de pessoas que não conhece. Se ao início pedia testemunhos em formato áudio, rapidamente percebeu que o à vontade era maior se estes fossem escritos e lidos por si ao microfone. “As pessoas acabaram por mexer em memórias do passado, que eram sensíveis. O futebol podia lembrar-lhes o pai que já tinham perdido.” E isso, diz, “foi muito tocante e inspirador”.
Num dos últimos episódios publicados em 2020, antes da pausa que durou até ao início de Março de 2021, Márcia emocionou-se. A história de Miguel, que partilhou a última vez que foi com o pai a um estádio antes de morrer, lembrou-lhe “a última conversa” que teve com o avô, aquele que ouvia os relatos dentro do carro, e que foi, claro, sobre futebol. “Quando as nossas vivências são tão diferentes, o futebol ajuda a fazer a ligação”, acredita a portista.
“Mas é só um jogo de futebol…”
“Para quem gosta de futebol, não há comentário mais irritante do que este: ‘Mas é só um jogo de futebol…’” As palavras são de Raquel Vaz Pinto, autora do livro Para lá do relvado – o que podemos aprender com o futebol, editado pela Tinta da China em 2016, mas bem podiam ser de Márcia. Em Paredes, onde nasceu e cresceu, jogava à bola na escola, nos intervalos e nos torneios interturmas, e sente que teve o privilégio de pertencer a uma turma onde “90% das raparigas adoravam realmente futebol, não havia diferença entre meninas e meninos”.
Estudou Teatro no Balleteatro, no Porto, durante os anos do ensino secundário e enquanto frequentou o curso de Relações Públicas, no Instituto Superior da Maia, foi directora desportiva no União Sport Clube de Paredes, cargo que ocupou por sete anos. Como delegada de campo das camadas jovens, os “escolinhas”, afirmou-se “num mundo que ainda é de homens”. “Aprendi bastante porque comecei com uma equipa no primeiro ano de competição. Não sabiam sequer apertar os cordões”, recorda, a sorrir. Chegaram ao União sem “noção de equipa ou de como ultrapassar adversidades”, mas saíram com essas capacidades – e Márcia também. Lidar com o público, com os pais, treinadores e directores deu-lhe “uma bagagem muito grande para lidar com pessoas e contornar obstáculos”, o que veio a ser útil para o estágio de relações públicas no Rio Ave Futebol Clube.
A experiência num clube da primeira liga mostrou-lhe como são as relações entre pessoas e destas com o jogo o que mais lhe interessa. “Adorei, mas sentia muita falta de estar em campo, perto dos atletas, da formação, de acompanhar o treino.” E foi o podcast que lhe permitiu regressar aos campos e aos clubes locais. A Federação Portuguesa de Futebol convidou-a para integrar um programa de comentário semanal no Canal 11, o Futebol Total, e ainda a desafiou a criar um novo, O Futebol é um Mundo. Quando o convite chegou, fez questão de dizer, entre risos: “Mas eu não ligo aos aspectos técnico-tácticos!” Aceitou o desafio de se juntar a um canal “que tem várias mulheres na equipa” – e isto quando ainda é notícia uma mulher liderar a equipa de arbitragem de um jogo mediático, como aconteceu recentemente. “É uma boa forma de apresentar visões diferentes.”
Histórias da Bola para Adormecer – que venceu o prémio de melhor podcast de storytelling no festival de podcasts do PÚBLICO, Podes, em 2020 – regressou, a 7 de Março, com um episódio que é também uma questão: o que é o melhor do futebol? As recordações e as emoções fazem parte da lista de Márcia, que gostava de transformar isto “numa espécie de memorial da bola, para guardar e espreitar as memórias dos outros”, independentemente do clube que apoiam. “Todos temos esta necessidade de contar e ouvir histórias, estarmos isolados aumenta a importância da partilha.” Vai uma história sobre isso?