Lisboa: Medina versus Moedas
A candidatura de Fernando Medina é, acima de tudo, a candidatura da herança de Manuel Salgado, mas sem o próprio, e com um conjunto de problemas para resolver, agora com menos dinheiro. E o maior problema da candidatura de Moedas é que a Lisboa de Salgado é dificilmente criticável pela direita.
1. A escolha de Moedas
A escolha de Carlos Moedas para Lisboa foi vista como uma excelente opção de Rui Rio. Ainda assim, à esquerda lembra-se o seu passado neoliberal e os perigos daí resultantes: primeiro, na área do investimento imobiliário e depois no governo de Passos Coelho, designadamente na implementação do programa da troika. Mas a passagem de Moedas pela Europa ter-lhe-á dado uma imagem de competência, moderação e sentido público, libertando-o dos estigmas associáveis às suas anteriores funções. Além do mais, o envolvimento de Moedas no imobiliário dificilmente poderá ser criticado por Medina, pois foi esse mesmo imobiliário um motor essencial de desenvolvimento da Lisboa do atual presidente da CML.
2. Medina e a herança de Salgado
Na realidade, falar da Lisboa de Medina é um sofisma. Não há uma Lisboa de Medina, mas sim uma Lisboa de Salgado para a qual o contributo de António Costa, enquanto presidente de câmara, terá sido mais importante que o do próprio Medina. E, portanto, a candidatura de Medina é, acima de tudo, a candidatura da herança de Salgado, mas sem o próprio, e com um conjunto de problemas para resolver, agora com menos dinheiro: desde os efeitos colaterais do sucesso da cidade de Salgado aos problemas resultantes da pandemia que terão causado um duro golpe nos cofres da autarquia.
3. O maior problema de Moedas
O maior problema da candidatura de Moedas é que a Lisboa de Salgado é dificilmente criticável pela direita. Muitos dos ingredientes da Lisboa de Salgado – o turismo ou a reabilitação urbana consideravelmente alicerçada no imobiliário – são inatacáveis pela direita. E são-no por dois motivos. Primeiro, porque fazem parte da sua própria matriz ideológico-programática. Segundo, porque sempre se articularam com a ação dos vários governos nacionais: desde o de Durão Barroso (com a criação das Sociedades de Reabilitação Urbana), anterior à chegada de Costa e Salgado à CML, o de Sócrates (com as negociações com o Porto de Lisboa que permitiram a reabilitação da frente ribeirinha ou o regime fiscal dos residentes não habituais) e o de Passos Coelho (com o investimento no turismo e alojamento local preconizado por Mesquita Nunes, a liberalização da lei das rendas ou os vistos gold).
4. Moedas: um mau começo (corrigível)
Na recente entrevista de Moedas à RTP3 (Grande Entrevista) apercebemo-nos do desconforto de um candidato que, por agora, ainda não encontrou solução para resolver esse seu grande problema. Sabemos que a pandemia é um momento de viragem nas nossas vidas, que as cidades e a vivência urbana foram especialmente afectadas. Mas daí a eleger como prioridade no seu programa para Lisboa a preparação da cidade para a próxima pandemia, como Moedas propõe, é um pouco deprimente e bastante redutor: é fazer tábua rasa de um passado muito forte que a pandemia poderá ter interrompido e seguramente alterado, mas não fez desaparecer, nem tão pouco alterar de forma radical.
Entre outras coisas, Moedas defende o conceito da cidade dos 15 minutos: um conceito discutível que recentemente se tornou no novo mantra do urbanismo para consumo imediato e que, entendido como solução urbanística única para a cidade, pode promover o paroquialismo e a segregação das vivências urbanas. Não vale a pena dissecar aqui as outras ideias que Moedas apresentou nessa entrevista, fruto do seu desconhecimento da cidade, das políticas urbanas, da sua governação e da complexidade dos problemas em curso. A função que Moedas desempenhou na UE (comissário para a Investigação, Inovação e Ciência) ter-lhe-á ensinado que, por mais importante que seja ouvir as pessoas (coisa que sublinhou como fundamental para o seu programa), isso não substitui o conhecimento especializado.
5. O que se espera dos candidatos?
A corrida está no início. Espera-se dos candidatos respostas aos problemas herdados da cidade de Salgado e aos da pandemia: alguns destes resultam dos anteriores, como é o caso do esvaziamento dos bairros “turistificados”. Como resolver ou acelerar a resolução do problema da habitação acessível? Como diversificar funcional e economicamente a cidade, reduzindo a excessiva dependência do turismo e do investimento imobiliário? E os transportes? Como melhorar a mobilidade intra e inter-urbana? Como equilibrar o reforço da pedonalização e das ciclovias com o automóvel?
Espera-se dos candidatos capacidade de antecipação dos problemas da cidade pós-pandemia e eventuais soluções: o que poderá acontecer se as pessoas não conseguirem pagar as moratórias de crédito, por exemplo? Serão forçadas a vender as suas casas a preços mais baixos, levando a uma desvalorização repentina do imobiliário, capitalizável por quem tem mais capacidade de investimento, seja nacional ou estrangeiro? O que acontecerá aos inquilinos que não conseguirem continuar a pagar as rendas? Assistir-se-á ao “boom 2” de Lisboa, na sequência da hipótese anterior ou da atração crescente da cidade para “trabalhadores digitais” ou outros? Fará mesmo sentido pensar que os escritórios ficarão vazios?
Por último, espera-se que os candidatos não deitem fora o bebé com a água do banho. Isto é, espera-se que saibam aproveitar e potenciar os aspectos positivos da cidade de Salgado: a reabilitação dos espaços públicos, que não se cingiu às zonas históricas; o reforço da inter-conectividade (pedonal ou por bicicleta) e permeabilidade dos espaços urbanos e bairros (inclusivamente os mais isolados, como é o caso de muitos bairros sociais, mas não só) – princípio que, se for mais desenvolvido, oferecerá aos “Lisboetas” uma cidade aberta e não segregacionista; ou a continuação do esforço iniciado, e muito valorizado por Medina, na habitação acessível.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico