Eutanásia, uma questão de tempo
O acórdão do Tribunal Constitucional revelado esta segunda-feira é uma vitória táctica e ao mesmo tempo uma derrota estratégica para os que se opõem à eutanásia.
Os deputados que aprovaram a descriminalização da antecipação da morte medicamente assistida vão ter pela frente a dura tarefa de determinar com precisão cirúrgica o que é uma “lesão definitiva de gravidade extrema”. Porém, vão podê-lo fazer num quadro de segurança muito maior do que quando aprovaram a lei que esta segunda-feira foi chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC) – porque, numa clara jogada de antecipação que põe termo a um debate longo e de conclusões incertas, os juízes do TC disseram de uma vez por todas que a “inviolabilidade da vida humana” consagrada no texto fundamental não é um muro intransponível à vontade soberana dos representantes da nação. Mais, fizeram questão de esclarecer, sem que ninguém o tivesse perguntado de forma explícita, que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”.
Pode por isso afirmar-se que o acórdão do tribunal revelado esta segunda-feira é uma vitória táctica e ao mesmo tempo uma derrota estratégica para os que se opõem à eutanásia. Das várias questões suscitadas pelo pedido de fiscalização do Presidente da República sobre o “carácter excessivamente indeterminado” das justificações para a eutanásia, apenas uma acabou por ser acolhida pelos juízes. O “sofrimento intolerável”, outra condição para a morte medicamente assistida que entrou no rol das dúvidas de Marcelo Rebelo de Sousa, é, na opinião dos juízes “determinável” por médicos e outros especialistas. O que está agora em causa são detalhes. Complexos, sem dúvida, e polémicos, de certeza – mas detalhes. A descriminalização da eutanásia tornou-se uma questão de tempo.
Quer isto dizer que o país perdeu tempo com o pedido de fiscalização do Presidente da República? Não, de todo. Pelo menos numa das questões por ele suscitadas, havia razões para dúvidas. Com o acórdão do TC, pelo menos nessa questão terá de haver um trabalho suplementar para determinar com mais rigor o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema. A exigência do TC desencadeada pela iniciativa de Marcelo tornará a lei, senão melhor, pelo menos livre de dúvidas sobre a sua conformidade com a Constituição.
Nada disto, como é evidente, bastará para aproximar posições entre quem está contra e a favor da eutanásia. Em causa estão valores, convicções, ideias, dogmas ou concepções do mundo todas elas legítimas ou naturais, mas, por natureza, irreconciliáveis. Também por isso era indispensável que em causa estivesse uma iniciativa política confirmada e garantida pelo tribunal que zela pelo cumprimento da lei na qual se sustentam as regras da nossa vida colectiva. Como aqui escrevemos quando o Presidente enviou a lei para o TC, fosse qual fosse a sua decisão, o país ficaria a ganhar. E ficou a ganhar.