Marcelo envia eutanásia para o Tribunal Constitucional com dúvidas que atingem âmago da lei
No mesmo dia em que recebeu a lei do Parlamento, o Presidente da República pediu a verificação da constitucionalidade da lei, por considerar que “recorre a conceitos excessivamente indeterminados” nos pressupostos para a despenalização da morte medicamente assistida.
O Presidente da República não hesitou: mal recebeu do Parlamento a lei que despenaliza a morte medicamente assistida, enviou o diploma para o Tribunal Constitucional, o que faz apenas pela segunda vez neste primeiro mandato. Marcelo Rebelo de Sousa pede a fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma por considerar que “recorre a conceitos excessivamente indeterminados” - atingindo assim o âmago da lei aprovada pelos deputados a 29 de Janeiro.
Leia aqui o requerimento do Presidente na íntegra
“Considerando que recorre a conceitos excessivamente indeterminados, na definição dos requisitos de permissão da despenalização da morte medicamente assistida, e consagra a delegação, pela Assembleia da República, de matéria que lhe competia densificar, o Presidente da Republica decidiu submeter a fiscalização preventiva de constitucionalidade, o Decreto da Assembleia da República, que regula as condições especiais em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, nos termos do requerimento, em anexo, enviado hoje ao Tribunal Constitucional”, diz a nota divulgada aos jornalistas pela Casa Civil da Presidência da República.
Em particular, o Presidente refere-se aos conceitos de “situação de sofrimento intolerável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”, previstos na lei como condições essenciais para que a eutanásia não seja punida. Sendo dois elementos essenciais da lei, colocam em causa a sua aplicabilidade, e por isso Marcelo Rebelo de Sousa pede também que se avaliem outras normas, como as que dizem respeito à forma como o médico especialista e a Comissão de Verificação e Avaliação devem ponderar a sua decisão.
“Não é objecto deste requerimento ao Tribunal Constitucional, em todo o caso, a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição”, sublinha Marcelo no texto enviado para o Palácio Ratton, fazendo questão de deixar de fora a sua opinião pessoal enquanto católico. Antes “a questão de saber se a concreta regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente decreto se conforma com a Constituição, numa matéria que se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana”.
Marcelo considera que o conceito de situação de sofrimento intolerável “não se encontra minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte inequívoco das leges artis médicas”. Na opinião do Presidente, o sofrimento é algo com “uma forte dimensão de subjectividade” e, como estes conceitos devem ser preenchidos pelo médico orientador e pelo médico especialista, “resulta pouco claro como deve ser mensurado esse sofrimento: se da perspectiva exclusiva do doente, se da avaliação que dela faz o médico”.
Do mesmo modo, considera que também o conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema" carece de “densificação” e de “consenso científico”. Tudo junto, “não parece que o legislador forneça ao médico interveniente no procedimento um quadro legislativo minimamente seguro que possa guiar a sua actuação”. “Acresce que, sendo o único critério associado à lesão o seu carácter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida lesão, tal como alerta, no seu parecer, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida”, acrescenta Marcelo Rebelo de Sousa.
A decisão é dos médicos?
Num outro plano, Marcelo Rebelo de Sousa recupera o parecer do Conselho Superior do Ministério Público para alertar para outra dimensão em que “essa falta de densidade se revela especialmente problemática”. Cabendo ao médico a concretização daqueles conceitos, poderá estar a ser violada a norma constitucional que impede a delegação de poderes para decidir sobre matéria de direitos, liberdades e garantias.
“Ao utilizar conceitos altamente indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias, remetendo a sua definição, quase total, para os pareceres dos médicos orientador e especialista, o legislador parece violar a proibição de delegação, constante no artigo 112.º da Constituição”, lê-se no requerimento enviado ao Tribunal Constitucional.
Em suma, escreve o Presidente com o bisturi cirúrgico do constitucionalista que também é: “O legislador criou uma situação de insegurança jurídica que seria, de todo em todo, de evitar, numa matéria tão sensível. Esta insegurança afecta todos os envolvidos: peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se vêem privados de um regime claro e seguro, num tema tão complexo e controverso”.
Marcelo usa também um argumento político que se dirige mais ao Parlamento do que aos juízes do Palácio Ratton, quando recusa, por antecipação, a eventual tese de que a regulamentação da lei poderia corrigir a falta de densificação dos pressupostos da eutanásia: "Sendo o presente decreto o único instrumento legislativo que pode ser analisado neste momento, e padecendo ele das insuficiências assinaladas, a sua inconstitucionalidade não pode ser sanada com a expectativa de um regime futuro, cujo conteúdo se desconhece, ainda que dele o legislador faça depender a entrada em vigor do regime presente”.
O anúncio do pedido de fiscalização preventiva à lei da eutanásia foi feito um dia depois de o Presidente da República ter dado posse, como membros do Conselho de Estado, ao novo presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, assim como ao presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro. O Tribunal Constitucional tem agora 25 dias para se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva do Presidente da República.
A lei da eutanásia foi aprovada com 136 votos a favor das bancadas parlamentares do PS (com excepção de oito deputados), do Bloco, do PAN e do PEV, assim como 14 deputados do PSD, o deputado da IL, João Cotrim Figueiredo, e as deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. O PCP, o CDS e o deputado do Chega, André Ventura, votaram contra, assim como nove deputados do PS e 56 do PSD – num total de 78 votos contra. Houve ainda quatro abstenções – duas do PS e duas do PSD.