O Governo descobriu uma vacina
Ao fazer depender decisões de uma combinação matemática que determina se o país desconfina mais, se não desconfina ou se regride no desconfinamento, o Governo encontrou a sua vacina.
Bem para lá dos méritos do plano de “regresso à normalidade” que o primeiro-ministro apresentou, que os há sem dúvida, há uma evidente ambição no seu desenho: obter imunidade política à crise pandémica. Ao fazer depender decisões de uma combinação matemática que determina se o país desconfina mais, se não desconfina, ou se regride no desconfinamento, o Governo encontrou a sua vacina. A resposta à progressão do coronavírus tem por base os contributos da ciência; se a ciência funcionar, a sua opção será uma prova de clarividência, racionalidade e de eficácia; se a fórmula não funcionar, a responsabilidade poderá ser sempre remetida para a inadequação dos critérios fornecidos pela ciência, sejam os 120 casos de infecção por 100 mil pessoas nos últimos 14 dias, seja o famoso índice que mede a transmissibilidade, o R.
A estratégia do Governo é inteligente. Poupa-o às leituras conjunturais sobre o estado da pandemia. Liberta-o da aleatoriedade da prudência ou da ousadia. Limita o risco da incerteza. Daqui para a frente, basta pedir a cada 15 dias os estudos sobre o R e os números de infectados nas semanas anteriores e aplicar automaticamente a receita. Está no quadradinho amarelo? Fica como está. No verde? Avança. A coisa ficou negra e passou para o vermelho? Recua. Ou, por outras palavras, fique o confinamento como está, avance ou recue, estão dispensadas as leituras políticas que envolvem coisas complexas, como o estado da Educação ou das empresas. A fórmula resolve tudo.
Há nesta estratégia uma evidente bondade: mesmo que haja zonas de penumbra, a precisar de mais definição, entre o verde, o amarelo e o vermelho, os cidadãos sabem com o que contam. Mas há um não menos óbvio perigo: o de acreditar que a pandemia evolui em linhas previsíveis e encaixáveis em fórmulas estáticas. Se no período de 15 dias acontecer o que aconteceu na primeira quinzena de Janeiro, a mecânica lógica, ou científica, da fórmula pode ser arriscada – porque se no dia da decisão os casos estiverem abaixo dos 120 e o R abaixo de 1, pode haver nesse preciso momento a suspeita de que nos dias seguintes a sua progressão vai acelerar-se vertiginosamente.
Nada na pandemia é previsível e ainda menos sabido, dir-se-á. É verdade. A receita do Governo, com toda a sua bondade, lógica e racionalidade não o blinda a essa realidade — mas não deixa de ser uma vacina razoável para o imunizar contra as críticas. Como todas as vacinas, porém, a eficácia dos quadradinhos coloridos está longe de ser total. Veremos se criará anticorpos políticos, ou se produzirá apenas reacções indesejáveis.