“Nu sta djuntu!”, gritou Dino d’ Santiago, numa noite para recordar
Um acontecimento único, entre a intervenção musical, artística e política. Foi assim a transmissão via live streaming, de Dino d’ Santiago e uma mão cheia de convidados, na noite de aniversário do PÚBLICO.
Foi inspirador e estimulante. Não foi um concerto clássico. Foi outra coisa mais indefinível, entre a intervenção musical, artística e política. Foi na noite de sábado, no auditório do PÚBLICO, com transmissão via live streaming, por ocasião do 31.º aniversário do jornal, que Dino d’ Santiago e uma mão cheia de convidados proporcionaram um daqueles acontecimento únicos, com músicos, artistas e activistas de punho erguido, em nome de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária.
Em primeiro lugar, falemos do magnífico cenário, com uma instalação (Maka Lisboa) da autoria do artista Francisco Vidal e de Namalimba Coelho, dedicada a todas as vítimas de injustiça e opressão e aos que lutam pela liberdade, igualdade e representatividade. O palco estava forrado com notícias da história do jornal que apontam para situações de injustiça racial, de género ou socioeconómicas, e era também dominado pelas pinturas-retratos de Cláudia Simões, Giovani Rodrigues, Alcindo Monteiro e Bruno Candé, símbolos da luta anti-racista em Portugal.
Ao mesmo tempo que os cantores-performers evoluíam em palco, o artista Francisco Vidal ia criando intervenções em tempo real sobre capas de jornais, inscrevendo aí os nomes dos envolvidos na operação desencadeada por Dino. Foi o autor de álbuns como Mundu Nôbu (2018) e Kriola (2020), que congregou uma série de cúmplices para a interpretação de canções a solo ou em dueto. A escolha do repertório não foi inocente. Privilegiaram-se canções mais interventivas, do próprio Dino, ou de outros cantores presentes, com os quais foi colaborando ao longo dos anos.
Quem entrou primeiro em acção foi a actriz Isabél Zuaa, portuguesa que tem feito carreira essencialmente no Brasil, marcando de imediato o serão, dizendo com intensidade um magnífico texto (com fragmentos da peça Aurora Negra, em que Zuaa era uma das protagonistas), onde as cicatrizes do passado colonial e os atropelos do presente coabitaram, mas sem esquecer que a luta é também feita com alegria. “Uma mulher negra feliz é um acto revolucionário!”, exclamou às tantas. Dino que entrou em palco de seguida definiu-o como “um manifesto de puro amor anti-racismo” e parece uma boa tradução do que se viu e ouviu.
Canções como Flan pamodi, Brava (Carta pa Tereza) e Chega pra lá foram depois interpretadas por Dino, com a habitual incisão e maleabilidade, algo presente tanto na língua (entre o crioulo e o português), como nas palavras, na fisicalidade ou na sonoridade, algures entre o apelo local, de Cabo Verde a Portugal, como globalizado, de Londres a Berlim. O crioulo foi provavelmente a língua da noite, com Dino a lançar às tantas, na direcção do activista Mamadou Ba e da socióloga Cristina Roldão, que estavam a assistir: “Nu sta djuntu!”
O espectáculo era em nome de Mamadou Ba, no seguimento do recente episódio do abaixo-assinado pedindo a sua deportação, com eventuais donativos a reverterem para a organização SOS Racismo. Essa união, a que Dino aludiu, sentiu-se depois entre todos os participantes. O rapper NGA entrou em cena com a habitual veemência para interpretar, com Dino, Por nós, enquanto Vado MKA voltou a introduzir o crioulo em Nhôs obi, num lamento evocador onde se sentiu a presença de Cabo Verde. Desse país tinha acabado de chegar a cantora Kady para uma elegante canção com tanto de soul como de kizomba. Para a canção Roda, Dino chamou para o palco Vírgul, a quem agradeceu os anos de aprendizagem e a influência, desde os tempos dos Da Weasel.
Outra figura também importante no trajecto de Dino foi Sam The Kid, que entrou em palco para interpretarem O nomeado. No final, Sam, agradeceu-lhe aquele momento, estarem todos ali por uma causa justa. “Obrigado pela inspiração que dás ao pessoal”, afirmou. Um dos momentos mais frenéticos aconteceu quando Chullage (ou seja, Prétu), entrou em cena para Fidju maria, com o hip-hop a misturar-se com o funaná, ou quando Julinho KSD se entregou com Dino à interpretação de Kriolu, com o serpentear e o dinamismo rítmico do funaná em evidência.
Para o final, ficou Mundu nôbu e Tudo certo, numa noite de solidariedade, de luta, de aniversários — do PÚBLICO e também do “meu filho, Luca, que faz hoje um mês”, disse Dino — e de música afro-portuguesa, capaz de reelaborações passíveis de reconfigurar outra história da cultura e da sociedade portuguesas, onde as vozes e os legados negros são elementos vitais. Foi emocionante. E também importante.