Deixem-me ser só médico de família
Os dias passam e com eles vamo-nos adaptando a um novo normal ou, melhor dizendo, a um novo anormal, na prática da Medicina Geral e Familiar. Moldamos a actividade clínica diária e vamos esticando o elástico, até que parta. E tem partido para alguns colegas.
O ano de 2020 dispensa adjectivos. Nunca o cliché “Éramos felizes e não sabíamos” fez tanto sentido.
Profissionalmente, foi desafiante e incerto. Ninguém estava preparado, nem os profissionais, nem a Medicina Geral e Familiar (MGF). Desde a incerteza que se mantém relativamente à covid-19, quanto à forma de prevenir, actuar, monitorizar, curar, até às dúvidas e à comunicação, por vezes errática, dos gestores de processos na cadeia de comando e controlo, tudo foi factor de desgaste. Como se não bastasse, o estado da MGF em Portugal mantém-se inalterado há anos. A reforma dos cuidados de saúde primários (CSP) estagnou, para não dizer mesmo que, em alguns casos, tem até sofrido retrocessos. Os problemas estão identificados, já os enumerei aqui em 2017, são do conhecimento de todos, e perduram. Divido estes problemas em quatro sectores: informática, integração de cuidados, burocracia e tempo.
O sistema informático, que deveria ser único, integrado e funcional, permanece espartilhado por vários e pequenos programas que estão desintegrados e disfuncionais, dos quais me ocorrem, de momento, o RNU, SINUS, SICO, SISO, SGTD, SCLINICO, SIMA rastreios, ALERT P1/CTH – Consulta a Tempo e Horas, RNCCI, PEM, MIMuF, PDS, SINAVE, entre tantos outros. Por falta de vontade, de tempo ou de ajudas técnicas, o doente está a ser prejudicado pela falta da integração de cuidados, privado de um processo único, actualizado, partilhado entre os diferentes níveis de cuidados de saúde que seria certamente uma mais-valia para o profissional e, acima de tudo, para o doente. O fosso e a falta de diálogo entre os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários mantêm-se. A burocracia em Medicina Geral e Familiar perpetua-se: atestados para isto e para aquilo, declarações por tudo e por nada, tudo serve para onerar o médico de atestar o que quer que seja. E, por fim, o tempo, essa grandeza relativa que inevitavelmente escasseia quando queremos assegurar cuidados de saúde primários de qualidade a 1800 ttentes e muitas mais unidades ponderadas.
Eis senão quando, a acrescer a uma actividade diária que já ultrapassa o limite do bom senso, surge a pandemia por covid-19. Pensava eu que em tempo de catástrofe era altura de facilitar, mas não. A covid-19 trouxe outro programa informático desintegrado, o Tracecovid, agravou o fosso entre os CSP e os cuidados hospitalares, andando agora os dois níveis de cuidados a olhar para o umbigo, a tentar apagar fogos e recuperar o tempo perdido, e a colocar em dia o que ficou para trás. Exacerbou a burocracia com declarações de risco, baixas médicas, isolamentos, declarações de fim de isolamento, declarações e mais declarações… Mas faltou e falta o tempo, e a solução foi levar trabalho para casa, para a noite, para o fim-de-semana. Os dias passam e com eles vamo-nos adaptando a um novo normal ou, melhor dizendo, a um novo anormal, na prática da Medicina Geral e Familiar. Moldamos a actividade clínica diária e vamos esticando o elástico, até que parta. E tem partido para alguns colegas nossos. É público que o burnout é uma realidade actual e o número de profissionais de saúde a pedir ajuda psicológica tem aumentado exponencialmente, não só pela sobrecarga diária que a pandemia trouxe, mas também porque já antes trabalhavam no limite das forças.
Dito isto, peço, como profissional, que em 2021 me deixem ser só médico de família dos meus utentes. Peço eu, pedem eles, pede a família deles e pede também a minha família.