O Ministério do Ambiente e a fábula da raposa a guardar o galinheiro
É por demais evidente que o atual Jardim de Sophia, no Porto, é uma prova provada da incapacidade artística dos nossos arquitetos paisagistas. Como certeiramente disse o senhor ministro, “de bonito aquele jardim só tem o nome”. Assim mesmo, bravo. Julgámos estar a assistir a uma aula magistral de estética da paisagem.
Tenho 75 anos. Há poucas coisas já que me surpreendam. Mas tenho que confessar que já não esperava ouvir um governante exprimir um juízo, revelar uma decisão, com tal mão de mestre. O senhor ministro do Ambiente, ao responder há dias a uma deputada que se julgou habilitada para o interrogar, fez prova de uma invulgar lucidez em matéria de estética e de paisagismo.
Sabíamos já que Portugal, embora tardiamente, foi viveiro de alguns grandes mestres nessa matéria. Basta pensar em Francisco Caldeira Cabral, António Viana Barreto, Gonçalo Ribeiro Telles, que ainda recentemente o governo e o país homenagearam e choraram. Ou, aqui no Norte, o minhoto de nascimento e portuense de adoção, o agrónomo e arquiteto paisagista Ilídio Alves de Araújo, que elevou a Arte dos Jardins a um altíssimo plano. Ou ainda o Professor Baeta Neves, que sendo silvicultor e não paisagista, foi pioneiro na criação do movimento de cidadania português em prol da conservação da natureza, que desde sempre foi também um movimento de defesa da paisagem e do património visual.
Num plano superior
Mas o senhor ministro, desassombradamente, conseguiu alçar-se a um plano muitíssimo superior. Contrariando alguns rumores que por aí correm, foi capaz de acertar em cheio no alvo: é por demais evidente que o atual Jardim de Sophia, no Porto, é uma prova provada da incapacidade artística dos nossos arquitetos paisagistas. Como certeiramente disse o senhor ministro, “de bonito aquele jardim só tem o nome”. Assim mesmo, bravo. Julgámos estar a assistir a uma aula magistral de estética da paisagem.
De um só gesto, o senhor ministro conseguiu também pôr no seu lugar uma série de jovens, supomos, que se julgam peritos e competentes na avaliação da arte da paisagem e do património visual. Por imprudente, talvez leviana incumbência da Agência Portuguesa do Ambiente (tutelada vá lá saber-se por quem), foi-lhes cometida uma missão de grande responsabilidade, mas que não precisavam de levar tão exageradamente a sério. É preciso estar imbuído de uma notória vaidade juvenil para, perante a manifesta disformidade, o evidente despautério que é aquele jardim, ousarem escrever o que escreveram a propósito daquela feiúra que tem por única beleza o nome, ao determinarem a obrigatoriedade de “compatibilizar a conceção da Estação da Galiza com a preservação integral do Jardim de Sophia, único, de autor e que se apresenta em estádio maduro (...) de desenho contemporâneo e único na cidade do Porto, cuja integridade física deve ser mantida”. Um atrevimento!
Mancha insuportável
Estas expressões incompetentemente laudatórias e irresponsáveis são uma mancha insuportável numa Declaração de Impacte Ambiental emitida, entre outros aspetos, sobre a Estação Galiza projetada para a nova Linha Rosa do Metro do Porto. Mas quem foram esses pedantes que ousaram achar belo o que o senhor ministro, avisadamente, decretou ser feio? Pois nada menos que, supomos, os “rapazes” e as “meninas” a quem foi cometida essa parte da mesma DIA e que trabalham na “entidade responsável pelo fator ambiental Paisagem, o Centro de Ecologia Aplicada Prof. Baeta Neves – CEABN do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa”. Não querem lá ver?
A perspicácia em matéria de estética e de Arte dos Jardins que transparece das palavras do senhor ministro tinha sido já precedida de algo de semelhante por parte de altos responsáveis do município do Porto. Mas sem a acutilância, o golpe de vista, a sagacidade, que transparecem das palavras do senhor ministro ao responder à imprudente deputada. De facto, exprimiram-se de forma bem mais timorata. Não tiveram o desassombro de dizer que o atual jardim nada tem de bonito, garantiram apenas, e aí sim, com seguro juízo crítico e olhar de mestre, que o novo “jardim” que para ali foi encomendado será mais bonito e melhor, o que infelizmente acaba por significar que consideram o atual bom e bonito, embora menos que o futuro. Tiveram ainda um rasgo de exagerada generosidade para com aquele desconchavo ao qual, há quatro anos, em 2017, incautamente batizaram com o belíssimo nome que tem. Um passo em falso, uma distração, um nome daqueles para aquela trapalhada destemperada que nem sequer se percebe que é um jardim.
Anda por aí na internet
Tem razão o senhor ministro. Ao contrário, há ignorantes que acham uma sensaboria essa coisa da Avaliação de Impacte Ambiental. A tal DIA, dizem, foi emitida em fevereiro de 2019, andamos nisto há dois anos, que grande perda de tempo. E está tudo isto preso por causa de uma tal de “consulta pública” que ainda não acabou e onde ainda nada se decidiu de definitivo. Para quê levar a sério e ter que responder aos cidadãos e entidades que nela se pronunciaram? Atrasos, só atrasos, dizem. Todavia, estão errados.
De modo preclaro, sensatamente, os responsáveis pelas obras, projetadas há muito para aquele local, adivinharam, sem que ninguém lhes tivesse dito nada (enquanto ainda decorre a consulta pública – incompreensível como se não pode escancarar desde logo aquilo que toda a gente já pode adivinhar), a decisão que se revela na recente e brilhante análise estética do senhor ministro. Por isso, nem por um momento vacilaram perante o estorvo que é essa malfadada DIA. Com garbo e sainete, há cerca de dois anos que tudo puseram em ação para que, logo que soe a hora, se faça, no caso vertente, exatamente o contrário do que a DIA determina. Com a compreensão e benevolência da Câmara Municipal do Porto que, para bem da cidade, se esforça por secundar prestimosamente tal audácia e zelo. Não se lhes pode levar a mal.
Segundo alguns alarmistas, anda por aí na internet uma petição “em defesa do Jardim de Sophia e de 503 sobreiros: alerta para o incumprimento da Declaração de Impacte Ambiental pela Metro do Porto”. Mas como se pode defender uma coisa tão feia — com um nome tão bonito?
Em tempo: a decisão definitiva pode eclodir de um momento para o outro. Não será surpresa se mostrar que tudo estava decidido há muito e enquanto a consulta pública a declarava em análise.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico