A UE está a dormir? Viktor Orbán e a corrupção na Hungria durante a covid-19
A pandemia tem servido de disfarce a uma série de movimentos do Fidesz para consolidar o poder. A distribuição e externalização de vastos fundos públicos a empresários amigos do Fidesz, bem como a instalação de figuras do partido em conselhos públicos, será difícil de inverter.
“Não lido com questões de negócios” – comentou uma vez Viktor Orbán numa conferência de imprensa quando lhe perguntaram como é que o seu genro, o seu pai, o seu vizinho e o seu amigo universitário se tinham tornado bilionários. “Não existe um nível considerável de corrupção na Hungria”, disse ele.
Há uns meses, o mesmo Viktor Orbán lutou afincadamente em Bruxelas para assegurar que o pacote de recuperação da UE para combater a crise do coronavírus, de 1,8 biliões de euros, não dependesse da manutenção do Estado de direito – incluindo a fraude e a corrupção. O governo de Orbán ameaçou vetar todo o acordo. No Fórum Estratégico de Bled de 2020, Orbán, que participou numa plataforma de combate à corrupção, rotulou a Hungria de “uma enfadonha democracia representativa”. Sendo assim, por que motivo um defensor de um governo bom e transparente se preocuparia tanto com a monitorização da UE?
Basta ver como o governo de Orbán tem gerido os fundos públicos durante a pandemia. Na primavera passada, com a aproximação da primeira vaga, o primeiro-ministro anunciou que o país iria adquirir cinco mil ventiladores que permitiriam que “toda a gente dormisse pacificamente”. De acordo com as previsões mais pessimistas, a Hungria precisaria de um máximo de oito mil ventiladores.
Apesar destas projecções, o gabinete comprou 20 mil ventiladores. Pouco depois, foi revelado que vários milhares destas máquinas desnecessárias tinham sido encomendados por empresas desconhecidas associadas a políticos governamentais – incluindo o conselheiro de Negócios Estrangeiros do primeiro-ministro. Além disso, investigações jornalísticas revelaram que, em 2020, a Hungria gastou o maior montante em ventiladores na Europa, tendo pago dez vezes mais do que os seus homólogos italianos e alemães por ventiladores vindos da China. Neste momento, cerca de 16 mil destas máquinas, muitas compradas através de empresários amigos do Fidesz, encontram-se em armazéns, sendo o governo incapaz de as vender. Não houve qualquer investigação formal sobre este escândalo.
A indústria do turismo da Hungria mostra como o clientelismo tem prosperado durante a era Orbán. Atingido duramente pela pandemia, o governo distribuiu 83 mil milhões de florins húngaros (cerca de 230 milhões de euros) à indústria para a reconstrução de hotéis. No entanto, um quinto destes fundos foi doado a uma única cadeia hoteleira, a Hunguest Hotels, que é propriedade de Lőrinc Mészáros, um aliado de longa data de Orbán. O velho amigo do primeiro-ministro tornou-se milagrosamente a pessoa mais rica da Hungria em dez anos, subindo de uma carreira humilde como engenheiro local na área do gás para a pessoa mais rica da Hungria. A soma atribuída à Hunguest Hotels foi igual ao montante concedido ao conjunto de 5166 proprietários de pousadas e hotéis mais pequenos. No total, aproximadamente metade de todos os fundos de reconstrução de hotéis teve como destino proprietários que a ele se aliaram.
No entanto, Mészáros não é um caso isolado: a pandemia tem proporcionado abundantes oportunidades para empresas ligadas ao Fidesz. Na última primavera, quando a Comissão Europeia permitiu aos Estados-membros utilizar fundos estruturais para a gestão de crises, o governo de Orbán permitiu que estes fundos adicionais pudessem ser utilizados para empréstimos destinados à aquisição de empresas depreciadas.
Orbán anunciou orgulhosamente que, desde 2010, a “propriedade húngara” aumentou no sector energético, bancário e dos meios de comunicação social, de 20-30% para mais de 50% – com mais transições patrimoniais planeadas nos sectores do retalho alimentar, das infocomunicações e das indústrias da construção e ferroviária. O que ele não disse, porém, é que este objectivo de “propriedade nacional” é politicamente motivado e exclusivamente em benefício dos seus próprios camaradas.
A pandemia tem servido de disfarce a uma série de movimentos do Fidesz para consolidar o poder. No ano passado, o partido de Orbán alterou a Constituição húngara pela nona vez desde 2011. Uma alteração aparentemente mundana, mas com grande potencial de mudança, foi a introdução de uma nova definição do que constitui um “fundo público”.
As novas regras ditam que os outrora organismos públicos independentes são agora regulados por uma maioria de dois terços dos deputados do Fidesz, permitindo ao governo preencher os conselhos de administração destas instituições com os políticos e os membros leais do Fidesz. O governo pode, deste modo, transferir fundos públicos para estas fundações a fim de subsidiar o seu funcionamento. Esta mudança significa que os fundos públicos se tornaram, na verdade, “privatizados”. No passado, os tribunais húngaros haviam apelado para que essas instituições públicas tornassem transparente o gasto dos seus donativos. No entanto, isto já não será possível, com as novas regras a deixarem claro aos juízes que estes devem ignorar a corrupção orquestrada pelo governo, dissimulada em fundações e empresas estatais.
Como consequência, a administração de Orbán transferiu uma enorme quantidade de património público para fundações públicas criadas recentemente – uma medida que acelerou a privatização de centros de educação e investigação, bem como de quinze universidades estatais. O governo húngaro tem agora um controlo mais estrito dos fundos das universidades e pode exercer uma influência excepcional no corpo docente e nos demais funcionários. A resistência de várias semanas de estudantes e professores/as da famosa Universidade de Teatro e Artes Cinematográficas (SZFE) em Budapeste, no ano passado, foi um exemplo da desesperada mas condenada batalha que as instituições outrora independentes enfrentam agora.
A distribuição e externalização de vastos fundos públicos a empresários amigos do Fidesz, bem como a instalação de figuras do partido em conselhos públicos, será difícil de inverter, mesmo que o partido de Orbán perca o poder. Sendo assim, não constituiu uma surpresa que, durante os acesos debates sobre o orçamento e o fundo de recuperação da UE, Orbán tenha exortado os líderes a distribuir fundos rapidamente e a discutir mais tarde as normas do Estado de direito.
O caos provocado pela covid-19 revelou-se útil para Viktor Orbán e outras figuras prontas a transpor os limites da lei. Por essa razão, mesmo sendo este um momento difícil, é crucial que a UE supervisione e intervenha. Sem controlos e equilíbrios eficazes, a distribuição abusiva de riqueza em tão grande escala minará, em breve, a oportunidade para uma mudança democrática de governo. Na Hungria, é isso que está em jogo.
Zsuzsanna Szelényi é uma antiga política húngara e especialista em política externa. Iniciou a sua carreira no Fidesz, que representou no parlamento de 1990 a 1994. Atualmente é bolseira da Fundação Robert Bosch
Tradução de Nelson Filipe