A Hungria de Orbán tem uma lição para os EUA: não tomem a democracia como garantida
Se os húngaros conseguem agora tirar o Fidesz do poder de modo pacífico, isso é questionável. Ter-se chegado a este ponto, no espaço de uma década, mostra como é fácil trilhar um caminho para a autocracia.
A pergunta “Aceitará ou não?” está agora a perder a força, à medida que Trump, de má vontade, permite o avanço do processo de transição. Mas há uma questão muito mais importante: mesmo quando o Presidente Joe Biden estiver instalado em segurança, será que Trump causou danos irrevogáveis nos alicerces da democracia norte-americana?
Ao tentar anular os votos de milhões de norte-americanos, Trump colocou os EUA num rumo perigoso: é um país dividido e um país onde o Estado de direito está desgastado e sob ameaça. Trata-se de um cenário que se assemelha à derrota eleitoral de Viktor Orbán na Hungria há 18 anos. A resposta de Orbán à sua derrota por margem mínima foi voltar para um segundo e terceiro mandato. Os defensores da democracia dos EUA fariam bem em estudar como Orbán conseguiu conquistar o Estado húngaro.
Nessa altura, Orbán pediu aos seus apoiantes que reunissem as irregularidades eleitorais e as comunicassem à “Linha da Democracia”, criada à pressa. “Não podemos estar na oposição, pois a nação não pode estar na oposição”, declarou Orbán – e, com base em centenas de alegações de fraude, o seu partido, o Fidesz, decidiu desafiar os resultados das eleições parlamentares do país.
Orbán acabou por ceder e deixou o cargo sem se encontrar com o seu sucessor. Contudo, reuniu os seus apoiantes e deixou claras as suas aspirações nacionalistas e hegemónicas, sugerindo que os seus rivais políticos estavam sob influência estrangeira e que apenas ele representava os verdadeiros húngaros.
Esta onda de frustração fez com que o Fidesz se tornasse um movimento mais unido. Formaram-se em todo o país os chamados “círculos cívicos”, unindo centenas de grupos políticos patrióticos, religiosos, culturais e locais, bem como muitas pequenas empresas, que, quer por interesse próprio, quer por afinidade ideológica, ou ambos, se alinharam com Orbán. A frustração da derrota eleitoral de 2002 uniu a facção de Orbán e, em poucos anos, este consolidou com êxito a sua liderança à direita.
Em 2006, Orban foi novamente derrotado. Apesar de então ter uma base eleitoral mais bem organizada, o seu radicalismo e personalidade divisória impediram o Fidesz de obter uma maioria. Embora a elite do partido tenha começado a procurar um líder mais moderado, Orbán agarrou-se a ele. Seis meses após as eleições, foi divulgado um discurso à porta fechada do recém-eleito primeiro-ministro socialista Ferenc Gyurcsány, no qual admitiu aos activistas do seu partido que tinham ocultado o verdadeiro estado da economia aos eleitores durante a campanha eleitoral, tendo afirmado que “estávamos a mentir de manhã, à tarde e à noite”.
Orbán aproveitou esta oportunidade para revelar a “fraude eleitoral” e questionar a legitimidade de todas as eleições. Orbán moveu o seu palco do Parlamento para as ruas. Durante vários meses, o Fidesz colocou entraves ao trabalho do Parlamento sempre que conseguiu – incluindo a remoção de um cordão de protecção para permitir que os manifestantes se aproximassem do edifício. A prolongada desordem corroeu a legitimidade do governo liderado pelos socialistas e, com a chegada da crise financeira de 2008, a coligação governamental foi empurrada para a beira do abismo. Tudo o que o Fidesz teve de fazer foi esperar. Então, em 2010, com uma grande maioria, o partido chegou de novo ao poder. Como disse Orbán, em privado, “só precisamos de ganhar uma vez, mas é preciso ganhar em grande”.
Durante os últimos dez anos, Orbán e o seu governo de partido único alteraram a Constituição e a lei eleitoral. Este mês, foi proposta uma nova lei para tornar mais difícil a colaboração dos partidos da oposição numa plataforma anti-Orbán. A propaganda nos meios de comunicação governamentais tem sido utilizada para recompensar os que se mostram leais ao Governo. Orbán lotou as instituições democráticas com amigos seus e construiu um sistema sofisticado de corrupção, com alegações de que é dado favorecimento ao seu círculo durante a adjudicação de concursos públicos.
Tal como outros partidos da direita, o Fidesz mudou de posição na última década. Estão a angariar apoio não através de optimismo, mas sim através da raiva, da ganância e das queixas. A racionalidade e o compromisso são agora cada vez mais difíceis de encontrar em ambos os lados do Atlântico.
Os Estados Unidos têm tido, tradicionalmente, uma influência forte e positiva na cultura política global. No entanto, o trumpismo e as eleições presidenciais de 2020 minaram essa posição. As instituições democráticas, tal como os seus controlos e equilíbrios, foram destruídas e as consequências podem ser de grande alcance.
Na Hungria, questionar eleições sem provas teria, em tempos, dado um golpe fatal na reputação de um político. No entanto, a sofisticada infra-estrutura política digitalizada e o estado de campanha permanente que o Fidesz introduziu permitiram a Orbán escapar à responsabilidade, apesar de enriquecer ainda mais os seus amigos. Isto acontece ao mesmo tempo que emergem fissuras no sistema de saúde do país.
Orbán, tal como Trump, exige a demonização dos opositores. Quer se trate do filantropo internacional George Soros, da população cigana do país ou da UE, há sempre um bode expiatório para os fracassos do primeiro-ministro. Isto foi evidenciado ainda esta semana, quando Orbán apresentou acusações de “corrupção” aos líderes da UE e a Soros, e vetou o Fundo de Recuperação da UE em protesto contra essa noção de que os subsídios da UE estariam ligados à medida em que os Estados-membros se mostram dispostos a defender o Estado de direito.
Se os húngaros conseguem agora tirar o Fidesz do poder de modo pacífico, isso é questionável. Ter-se chegado a este ponto, no espaço de uma década, mostra como é fácil trilhar um caminho para a autocracia. Esperamos que o comportamento de Trump – e o de Orbán, na Europa – seja um momento para os democratas abrirem os olhos e persuadirem, tanto os cidadãos de esquerda como os de direita, a enfrentarem os desafios colocados por políticos autocráticos. É a democracia que está em jogo, tanto nos EUA como na Europa. Os políticos, os meios de comunicação independentes e os movimentos de cidadãos têm de compreender que, nesta era de polarização, as instituições democráticas, bem como os seus controlos e equilíbrios, e o Estado de direito, todos tendem a desaparecer, a menos que estejamos dispostos a unir-nos para os proteger.
Zsuzsanna Szelényi é uma antiga política húngara e especialista em política externa. Iniciou a sua carreira no Fidesz, que representou no Parlamento de 1990 a 1994. Actualmente é bolseira da Fundação Robert Bosch