Com origens no Líbano e em Trinidade, Samira Nasr é uma lufada de ar fresco na Harper’s Bazaar
Samira Nasr faz história na Harper’s Bazaar ao ser a primeira mulher não branca a liderar a afamada revista. E por ser amável — o que, na indústria moda, é uma característica notável.
Ao longo de três décadas, Samira Nasr correu uma maratona a bom ritmo, atravessando um sistema de moda cheio de egos inchados e temperamentos excêntricos, conseguindo manter a reputação de alguém íntegro, um gosto impecável e um árduo compromisso com o trabalho. É também incrivelmente hábil nas suas funções, que têm passado por contar histórias visuais usando roupas e acessórios. Em Julho, reivindicou uma vitória e um lugar na história quando se tornou chefe de redacção da revista Harper's Bazaar, tornando-se a primeira mulher de pele escura a liderar a publicação de moda em 154 anos.
Após meses de ajustes e revisões – e contratempos pandémicos – a edição de Março, revelada online, é totalmente sua.
Samira Nasr não procurou a função na Bazaar nem era um dos nomes da linha da frente para ocupar o cargo. Na verdade, aos 50 anos, presumiu ter chegado ao máximo da sua carreira como editora de moda na Vanity Fair, onde respondia a Radhika Jones, cuja ascendência indígena (da parte da mãe) também fazia de si uma novidade aos comandos da revista.
Em vez disso, a profissional foi recrutada pouco tempo depois de a anterior editora da Bazaar, Glenda Bailey, ter anunciado a sua partida, em Janeiro de 2020. Como parte da sua candidatura, Samira Nasr foi convidada a re-imaginar a Bazaar, e assim que iniciou esse exercício profissional, o mundo mudou abruptamente. A profissional foi obrigada a definir o papel da revista no meio de uma pandemia mortal, numa época de declínio económico, durante um Verão de agitação civil e na tempestade de um ambiente mediático cheio de acusações de tudo, desde insensibilidade a racismo flagrante.
Assim, Samira Nasr começou pela moda. Teimosamente. Definitivamente. Alegremente. Ela não se desculparia por celebrar o luxo porque o luxo, diz, é liberdade. É a capacidade de fazer escolhas sobre como se parece, o que se faz, para onde se vai.
A sua versão da Bazar considera o interesse de um leitor pela moda no contexto de uma curiosidade intelectual mais ampla. A moda é uma ferramenta para construir uma identidade, e não se deita fora pedaços da sua identificação de uma estação para a outra. Talvez um pedaço da sua personalidade seja colocado na parte de trás do armário. Outro torna-se apenas uma camada aconchegante.
O atrevimento de Samira deu frutos. Em Junho, enquanto cuidava do seu filho, o telefone tocou e Kate Lewis, directora de conteúdos da Hearst Magazines, proprietária da Bazaar, ofereceu-lhe o emprego. E alguém com um tipo de história de vida diferente de todos os outros editores que alguma vez ocuparam o lugar foi subitamente convidado a ocupar o seu espaço no escritório.
“Lembro-me de, no início dos meus 30, a minha mãe me dizer para trazer todos os meus ‘eus’ para a sala. E isso marcou-me”, recorda. “Quando entro numa sala, reparo que todos me olham de uma certa forma. Eu noto essas coisas. Fico sempre admirada, mesmo nas redes sociais, quando as pessoas colocam fotografias de todos os seus amigos e todos têm a mesma aparência. Eu fico sempre ‘Uau’ – acho que qualquer pessoa marginalizada repara nessas coisas.”
“É algo que nós, que eu, notamos”, sublinha. “Estou perfeitamente consciente da minha presença quando entro numa sala. Sempre tive de estar.”
Uma pessoa amável
Samira Nasr é uma pessoa amável. O que gera comentários já que na indústria moda essa é tida como uma característica notável. Ela não é nem influenciável nem um pão sem sal; ela é simplesmente alguém que não vê qualquer razão para ser cruel por acção, omissão ou indiferença. E tem tentado ver conscientemente as pessoas que a rodeiam em vez de olhar através delas.
As razões para esta atitude são muitas. Afinal, as experiências vividas são responsáveis pela formação das pessoas que acabamos por ser. A história de Samira Nasr inclui uma infância com os pais divorciados, tendo ficado a viver com o pai; o ter sido uma criança que chegava a casa no modesto subúrbio de Pointe-Claire, cidade na ilha de Montreal, Canadá, apenas com o irmão mais velho como companhia; e uma mulher que se descreve a si própria como uma pessoa de pele escura, com toda a complexidade que isso implica. O seu pai, que já morreu, era libanês. A sua mãe, que voltou a casar, é de Trindade e Tobago.
Os Estados Unidos chamaram-lhe negra quando chegou ao país, mas Samira acabou por se tornar cidadã. A sua tez é castanha; o seu cabelo escuro é encaracolado; e ela fala em notas soprano suaves. Ela teve de ordenar com precisão o que chamar a si própria, porque não queria ofender uns, ao fugir a uma descrição, ou ofender outros, ao reivindicar uma biografia que não era a dela.
“Eu estava sempre consciente das minhas diferenças. Não era apenas a minha aparência ou o aspecto do meu cabelo. Eram mais coisas do género: Quem está em casa? Quem é que me vai fazer o almoço? Se o meu pai nos fazia o almoço, saía sempre algo esquisito, como uma mescla de vegetais numa coisa qualquer. Só não era [algo simples] como uma sandes de manteiga de amendoim”, diz Samira, rindo da memória. “O meu irmão contava: ‘Uma vez fui para a escola com uma lata de sardinhas, um ovo cozido e um tomate frio’.”
Na casa dos 20 anos, seguiu o seu irmão para os Estados Unidos para estudar jornalismo na Universidade de Nova Iorque depois de ter terminado uma licenciatura em Filosofia. Tinha visto uma capa de revista que apresentava “um pôr-do-sol e o topo de uma mesquita com uma mão a segurar uma espingarda”.
“Todas as imagens associadas ao Islão são de terroristas e de assassinos. E eu conheço o outro Islão da beleza e da compaixão”, contextualiza Samira Nasr, que, ao contrário de vários familiares seus, não é muçulmana. “Por isso, pensei: ‘Preciso de ir para a escola de jornalismo porque preciso de me tornar jornalista e contar a outra história do Islão.’”
Em busca de dinheiro extra, trabalhou como assistente de moda para Mary Alice Stephenson, que era editora júnior na revista Allure. “Crescemos juntos na indústria, apesar de ela, por vezes, trabalhar para mim”, recorda Mary Alice Stephenson, que abriu o seu próprio caminho no mundo brilhante das revistas de moda antes de sair para iniciar a Fundação Glam4Good. “A indústria da moda estava a ferver com personagens e egos inchados. Samira era calma, fresca e composta.” E, acrescenta, “essa firmeza foi realmente algo fortalecedor”.
Nasr nunca presumiu que existiam espaços aos quais pudesse não pertencer ou não ser bem recebida. E abria o seu caminho, da Allure à Vogue e por outros lugares, experimentando ocasionalmente sensações semelhantes àqueles pequenos cortes de papel que as pessoas não sentem até perceberem que estão a sangrar. Ela foi a excepção à regra, e realmente não deu por isso – até que um dia, enquanto ainda era assistente, alguém numa reunião transformou a sua pessoa numa peculiaridade.
“Alguém disse algo sobre o meu cabelo. E eu fiquei tipo: ‘De onde veio isto? O meu cabelo não está despenteado. Ele tem este aspecto.’ E depois olhei à minha volta e vi que toda a gente tinha caracóis louros perfeitos. E então percebi: ‘Oh, espera um segundo. Eles acham que estou despenteada porque o meu cabelo simplesmente não faz aquilo.’’
“Senti uma onda de vergonha como ‘Oh meu Deus, o meu cabelo está despenteado’. E foi aí que comecei a usar o meu cabelo sempre apanhado”, relata. Foi um momento de descuidada indelicadeza, uma forma de notar que uma regra não dita – estúpida, inútil, insidiosa – tinha sido quebrada.
“Tenho a sorte de ter uma rede de amigos, a maioria dos quais não trabalha na moda, que são de todos os tamanhos, formas, cores. E voltamos à nossa tribo e percebemos, tipo, ‘eu faço sentido’. Se isto acabar amanhã, estou bem”, descreve.
Ela está sentada no seu escritório na sede da Hearst, em Nova Iorque. Os seus caracóis fazem espirais de forma livre. As paredes são brancas e as prateleiras brancas estão vazias. Uma orquídea branca, apenas recentemente acrescentada, ocupa um canto de um armário porque todos os escritórios de moda precisam de flores. Uma taça contém um arsenal de lápis recém-afiados, o que não deixa de ser estranho nesta era digital.
A Bazar, com uma circulação de cerca de 753 mil exemplares, existe à sombra da Vogue com o seu maior número de leitores e a sua icónica editora-chefe, Anna Wintour. Mas a Bazaar tem sido responsável por uma quota-parte justa do legado visual e literário da moda de luxo.
De 1936 a 1962, Diana Vreeland serviu como editora de moda da revista enquanto desabrochava como uma sábia da indústria. A editora-chefe durante grande parte desse período, Carmel Snow, cunhou o termo “New Look” (novo estilo, numa tradução livre) para descrever o estilo após a Segunda Guerra criado por Christian Dior – o estilo que ressuscitou a moda francesa.
A Bazaar publicou algumas das imagens mais memoráveis da indústria, incluindo a fotografia a preto e branco tirada por Richard Avedon da modelo Dovima a posar languidamente entre dois elefantes. A revista foi o lar dos primeiros escritos de Truman Capote e uma vitrina para o artista Man Ray e o fotógrafo Henri Cartier-Bresson. E antes de O Diabo Veste Prada (2006), havia Cinderela em Paris (1957), com a eterna Audrey Hepburn, em que se revia o período em que Richard Avedon e Diana Vreeland tinham passado pela Bazaar.
Ao longo dos anos, a fortuna da Bazar subiu e caiu, atingindo o seu zénite moderno sob a liderança da falecida Liz Tilberis, cuja edição de estreia em 1992 implorou às mulheres que “entrassem na era da elegância”. Mas, como qualquer publicação impressa, a Bazaar tem de encontrar uma nova forma – e uma nova reserva de talentos – em tempos de mudança. Tanto a Vogue como a Vanity Fair só recentemente tiveram fotógrafos negros a trabalhar nas suas capas. A Bazaar não o fez – por enquanto.
“Como em muitas indústrias, sinto que a publicação de revistas é tendencialmente insular. Ela alimenta e recompensa as pessoas e cultiva-as”, diz Kate Lewis, da Hearst. “E a história das revistas é que essas pessoas são tipicamente brancas. E isso não nos vai levar à mudança.”
A edição de Março tem como capa Megan Thee Stallion, fotografada por Collier Schorr. O impulso inicial de Nasr foi o de contratar um fotógrafo negro para fotografar esta mulher negra. Mas ela também reconheceu que havia mais na história de Megan do que a tonalidade da sua pele. “Megan é sobre o empoderamento feminino e a positividade corporal, e esses são muitos dos temas que a Collier explora no seu trabalho”, diz Nasr. “E eu estava realmente curiosa em ver (Megan) através de uma lente feminina, gay.” Para questões futuras, Samira Nasr está de olho numa lista de jovens fotógrafos negros, incluindo Shaniqwa Jarvis, John Edmonds, Texas Isaiah e Philip-Daniel Ducasse.
A edição de Março inclui também uma história sobre a Birkin da Hermès, um portefólio que celebra o impacte cultural do Studio Museum no Harlem e uma peça da romancista Kaitlyn Greenidge, que também serve como directora de reportagens da revista.
“Eu queria mesmo uma mulher negra nesse papel”, diz Samira, esperando trazer para a revista algumas das vozes femininas mais provocantes desta época, garantindo que estas “sabem que o seu texto será respeitado e que a pessoa que as edita compreenderá as suas histórias”.
“Não estou a dizer que todos os editores brancos não têm a capacidade”, ressalva. “Estou apenas a dizer que há algo sobre ver a sua semelhança, ou saber que essa pessoa vai realmente vê-la, esse tipo de coisa abre a porta e permite um pouco mais de confiança”.
Greenidge, por sua vez, está a encomendar peças que analisam o Carnaval, o impacto da derrocada financeira do GameStop nos investidores negros e o impacte da morte nas comunidades britânicas ganesas.
“Não tenho nenhum tipo de noções preconcebidas sobre” revistas de moda, diz Greenidge. “Uma das minhas citações favoritas sobre leitura e sobre escrita em geral é que uma excelente forma de medir a qualidade de uma peça é, se depois de a leres, tiveres de falar com alguém sobre ela”. E acrescenta: “Esse é um tipo de compromisso ligeiramente diferente do ‘isto vai render um milhão de cliques’.”
Fé no luxo
Samira Nasr está em lágrimas. Está a trabalhar a partir da sua casa em Brooklyn e a tentar encontrar um lenço para as enxugar. Ela tinha estado a falar sobre os desafios da semana passada – nada específico, apenas sobre a vida como ela é neste momento. O seu filho, Lex, que ela adoptou há uns anos e que tem agora 7, está a enfrentar os obstáculos da escola à distância, e isso requer a sua atenção. Ela também fica um pouco emocionada ao recordar a sua infância e o seu pai, ou depois de ler um ensaio de Greenidge sobre o legado do amor, ou depois de contemplar o que significa ser uma “primeira vez”.
Nasr é “emocionalmente aberta”, diz Stephenson, “mas nunca excessivamente emocional”.
Ela está disposta a ser vista em toda a sua plenitude, de uma forma que pareça feita para o contacto interpessoal em vez de através de um rolo interminável de mensagens nas redes sociais. Ela não se revê com distanciamento ou grandeza, mas sim como alguém que ainda tem fé de que o trabalho simples e árduo é recompensado. Ela também ainda tem fé no luxo – mas como algo a ser acolhido, não descartado.
“É tão difícil, especialmente agora, falar do luxo com a intenção de proporcionar alegria, deleite e divertimento, em vez de ser algo tão aspiracional e movido pela fantasia que se torna quase ofensivo”, diz Nasr. “Quero levar a humanidade até ao luxo.”
Fazê-lo não tem tanto a ver com as marcas que são apresentadas na revista ou com as fotografias dos fatos baratos em cenários modestos. Trata-se de quem a moda está a tentar encantar, a quem os seus seguranças acolhem através da porta.
“Sinto-me como se estivesse a furar uma festa e a dizer, ‘[venham] mais 20’. Só quero trazer mais pessoas comigo para a festa, porque acho que isso vai torná-la mais interessante.” “Estou aqui e trouxe alguns amigos”, diz ela. “Espero que isso seja fixe.”