Ford e os descaminhos do capitalismo na Amazônia
Entre o empreendimento de Ford na Amazônia e governo Bolsonaro, uma mesma racionalidade parece atravessar a lógica dos empreendimentos capitalistas. Talvez a noção da natureza como obstáculo, o desprezo às diferenças, a forma autoritária e antidemocrática de tomada de decisão e a indiferença para com a vida.
Após a Ford anunciar o fim de um século de operações no Brasil no último dia 11, muitos se debruçaram sobre os motivos, o vazio que fica e os efeitos econômicos decorrentes da decisão. Bastante se fala do impacto, considerando sua repercussão sobre empregos e a economia brasileira. Não vemos, porém, na arena pública brasileira, uma discussão sobre a história da presença da Ford no Brasil — um portal para entender as artérias do modelo predatório vigente hoje na Amazônia.
A saída da Ford deixa, no retrovisor, um lastro de desemprego e frustração para milhares de brasileiros. Embora a empresa tenha se queixado das incongruências do sistema tributário brasileiro, reconhecidamente complexo, ela foi a grande beneficiária das isenções fiscais e outras benesses ao longo de décadas.
Nunca é demais lembrar que, há 94 anos, sob a batuta do então presidente Washington Luís e do governador Dionísio Bentes, a Assembleia Legislativa do Estado do Pará aprovou a concessão de uma área de aproximadamente 1 milhão de hectares (10.000 km²), situada a 820 km da capital, Belém, para Henry Ford, o pai da primeira linha de produção automobilística dos tempos modernos.
O empresário tinha uma ideia ambiciosa, como tudo em sua época: levar a “civilização” ao seio da Floresta Amazônica por meio do plantio de 800 mil hectares de seringueiras e uma cidade inteira para produzir borracha às margens do rio Tapajós, um dos principais afluentes do Amazonas. Ford precisava garantir matéria prima para a produção de pneus, que custavam cerca de 30% de seus carros. E não lhe agradava a ideia de um mercado controlado por ingleses, que produziam seringueiras em suas colônias orientais.
A preocupação de Ford estava ligada à interrupção da cultura da borracha na Amazônia, fornecedora original dos gigantes automobilísticos da época, bruscamente interrompida, após mais de 60 anos, quando o produto dos ingleses invadiu o mercado mundial. As sementes amazônicas, cerca de 70 mil, foram contrabandeadas para a Inglaterra – e de lá para Índia e Nova Zelândia – pelo britânico Henry Wickham. Em poucos anos, o eixo produtor da borracha no mundo foi deslocado para as colônias britânicas, deixando o vale amazônico a obsolescência e o esquecimento. Tal desfecho salvou a vida de centenas de indígenas e ribeirinhos amazônicos de um sistema que em muito é análogo à escravidão.
Ford tentou, por 18 anos, subjugar a floresta para satisfazer seus objetivos mercantis. E foi derrotado. Em seu meio natural, as seringueiras espalhavam-se por grandes extensões de mata e eram protegidas pela diversidade de espécies florestais em seu entorno. Porém, plantadas em áreas desmatadas e próximas umas das outras, foram presas fáceis para fungos, que paulatinamente consumiram o projeto do empresário norte-americano.
Ainda hoje é questionável o desembarque da companhia Ford na Amazônia brasileira em 1927, inexplicavelmente no declínio do boom da borracha. O dito pretexto seria fugir de qualquer dependência econômica dos cartéis ingleses e holandeses no suprimento do látex para sua linha de montagem. Sabemos que não foi bem assim. Ford lucrou muito mais com a madeira e os minerais extraídos da região e exportados sem nenhum controle pelas autoridades brasileiras.
Não obstante, ao construir as cidades de Fordlândia e Belterra, Ford levou a cabo sua utopia capitalista de controle da Natureza. Era um modelo que usurpava a cultura e o modo de vida local, impondo dinâmicas alheias ao caboclo amazônida e a seus modos de alimentação, festejo e labor. Fordlândia e Belterra foram abandonadas subitamente quando já não satisfaziam os interesses econômicos da companhia.
Práticas semelhantes de abandono se repetem ainda hoje, como o repentino fim de todas as operações da fábrica no Brasil neste ano — e vão além. Os rastros predatórios de destruição iniciados pela Ford na Amazônia se reinventam, porém deixam em evidência que, embora a Fordlândia tenha fracassado como projeto, de alguma maneira o modelo de ocupação da região triunfou e se multiplica nas veias de um sistema circulatório-capitalista adoecido.
Meu documentário Beyond Fordlândia (2018, 75 min) ou “Muito além de Fordlândia”, em tradução livre, conecta o passado da borracha ao cenário contemporâneo do agronegócio na Amazônia. Fica em evidência a ameaça que modelos de intervenção econômicos como o de Fordlândia produzem hoje aos biomas e às populações rurais, urbanas, indígenas, pequenos agricultores, mulheres e homens que têm uma ligação cultural e histórica com a região. Como bem sintetiza, no documentário, o professor Luís Magno Ribeiro, diretor da Escola em Fordlândia, o que fica para a população são apenas buracos, doenças e o vazio de esperanças:
“Ficaram as casas, ficaram as coisas, mas as outras coisas não se aproveitaram. Porque são projetos que requerem muito dinheiro, e para a Amazônia os investimentos são muito poucos. Prova disso é que nós temos hoje várias empresas trabalhando, principalmente indústria madeireira, que só levam, dão aquele emprego temporário, é um Ford da vida... e agora, empresas como a Caima explorando Gipsita e Calcário, que é uma cobrança intensiva, e a gente conscientizando nosso aluno que eles não estão deixando nada para nós, o que a Caima está deixando? Qual o benefício? Simplesmente existem esses acordos políticos? O que eles tão deixando para a população? Simplesmente um grande buraco? Só isso? Que vai ocasionar doenças como dengue, malária e outras coisas?”
Beyond Fordlândia New_Trailer from Revista Amazônia Latitude on Vimeo.
Ford e o Agronegócio
Segundo o historiador David L. Lewis, Henry Ford fez altos investimentos em soja. Em 1929, ele estabeleceu um laboratório em Dearborn, Michigan, para realizar pesquisas sobre como diversas plantas poderiam servir para fins industriais. Em 1931, ele decidiu concentrar esforços na soja. Até 1933, ele havia gastado 1,2 milhão de dólares e a revista Fortune apontou que “ele tinha tanto interesse na soja quanto no V8”. Ford acreditava que o plástico produzido com soja seria o material do futuro e, embora nunca tenha conseguido produzir em massa seu “sojamóvel”, Ford desenvolveu e testou um protótipo.
Se as empreitadas de Ford se desenharam como uma batalha do empreendedorismo contra o “inferno verde” ao tentarem impor uma lógica de produção, se representaram a batalha do homem contra o desconhecido, o agronegócio representa uma situação um tanto diferente. O Brasil é hoje o maior produtor e exportador de soja do planeta. A safra 2019/2020 – atualizada em setembro de 2020 – produziu 126 milhões de toneladas, das quais cerca de 93,6 milhões foram exportadas, de acordo com dados publicados pelo Ministério da Agricultura e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
A partir de julho de 2006 e renovado por prazo indefinido em maio de 2017, a Moratória da Soja, primeiro acordo brasileiro voluntário de desflorestamento zero nos trópicos, concordou em não comprar soja produzida nas terras desflorestadas da Amazônia brasileira. Não obstante, os campos de soja expandiram-se em um milhão de hectares nas últimas décadas no bioma amazônico, e a conversão direta de florestas para a produção de soja contribuiu para taxas recordes de desflorestamento.
Uma das cidades erguidas por Henry Ford, a paraense Belterra, possuia 13.851 hectares de plantio de soja em 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). O Sindicato Rural de Santarém, por sua vez, estima que a área plantada tenha superado os 25 mil hectares em 2020.
No Cerrado, segundo estudo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), em parceria com a Agrosatélite, nos últimos 18 anos, a área de soja passou de 7,5 milhões de hectares em 2000/2001, para 18,2 milhões de hectares em 2018/2019. Neste mesmo período, segundo a entidade, a produtividade cresceu 30%.
A aliança do atual governo com o agronegócio e a mineração ilegal foi construída ainda nas eleições de 2018 e tem resultado em uma série de ações criminosas que ameaçam a sobrevivência da floresta e seus povos. Apesar de serem claros os vínculos entre a expansão dessas atividades e tais efeitos devastadores, ainda parece haver pouco espaço de contestação ao modelo vigente, implementado por Ford há quase cem anos.
Quais são as razões do saudosismo da Ford na Amazônia? Seriam as apelativas notas publicadas no jornal A Cidade, de Santarém: “Ford é nosso amigo! Ele vai trazer dinheiro para esta terra! A vida vai melhorar! Teremos acesso ao luxo, o bom e o melhor! O progresso finalmente chegará ao Tapajós!” De forte e enganoso apelo popular, o exemplo fordista no Brasil é um modelo de cultura econômica predatória, mas sem parecer. Ele se apresenta como salvação na promoção de bem-estar e da riqueza na floresta; supondo a chegada de um inesperado progresso.
Portanto, em 2021, é extremamente importante estudar comparativamente esses processos de ocupação na região, com vistas às gerações futuras. Denota-se daí que os movimentos de defesa da Floresta e seus povos acham que detêm, de alguma forma, o avanço desses modelos por algum tempo. Não obstante, essa puxada de freio não resultará em estruturas institucionais que lhes permitam ter sustentação própria, pois o modelo Ford em curso no Brasil desde Fordlândia ganhou novos contornos e matizes de sedução (leia-se agronegócio).
A matriz Fordlândia e o agronegócio têm em comum na sua gênese a digital da exclusão e do racismo ambiental e se reproduzem como câncer nas artérias industrial do país. Seja na Zona Franca de Manaus, no Pólo Siderúrgico-Metalúrgico do Pará, nos projetos hidrelétricos como Belo Monte ou na cultura pop do agronegócio da soja, exemplos de como a Amazônia é tratada como força produtiva.
Matriz imperial
O perfil cultural da Ford na Amazônia tipifica um modelo imperial que se metamorfoseou no Brasil na forma de agronegócio. Pode-se dizer que o agronegócio superou o modelo econômico imperial fordista e se coloca nos movimentos da globalização da economia mundial, como um tipo de cultura que imprime um dinamismo aparente fora dos lugares centrais onde eles são gerenciados.
Do ponto de vista causal é muito mais do que se apresenta: seria como uma caixa de pandora. Ou seja, quando se fala numa cultura econômica, trata-se de um conjunto de determinações que estão embutidas e vão se abrindo, dependendo do lugar onde estejam, com várias feições.
Daí que temos a Cargill atuando de uma forma, a Alcoa de outra, o projeto Jari de outro, em Fordlândia de outro, numa espiral déjà vu interminável. Em essência, são estruturas diferentes de um mesmo modelo de cultura econômica. São ressignificações de algo muito profundo.
Embora consista em uma atividade que extrai a riqueza do subsolo, a mineração mata menos pessoas no curto prazo do que grandes empreendimentos (Cargill, Alcoa, Bunge etc.), que exploram as pessoas, a floresta, suas culturas, modos de vida e criam a ilusão de salvação e impedem o caminho próprio do etnodesenvolvimento.
O agronegócio supera o imperialismo fordista porque ele se reinventa na economia global, vai além de uma estrutura produtiva ligada ao que se extrai da terra. Não obstante, ele passa a comandar a Bolsa de Valores e leva à falência as iniciativas locais. Excluídos os competidores, torna-se centralizador e monitorador da ocupabilidade — por conseguinte, destruidor dos recursos naturais.
A ideia de industrialização da floresta em outras latitudes do planeta ocorre em longos processos de tempo de maturação para emergir, entre 50 e 100 anos. Na Amazônia, o mesmo processo se abrevia em períodos que variam de um a quatro anos.
O tempo da industrialização na floresta exige, portanto, a violência como modus operandi. Diferentemente de outras regiões do planeta, na Amazônia, não há nenhum tipo de preparação ou condição de emergência, simplesmente uma imposição predatória, onde todos os projetos operam na velocidade da luz: tiram tudo o que se pode com a máxima eficiência e rapidez. Quanto mais rápido, menor o tempo de reação da sociedade.
Como experiência histórica, Fordlândia ocupa um lugar de destaque na gênese desses processos de violência industrial na Amazônia. Ou seja, uma violência temporal impingida que desorganiza o próprio tempo da floresta e de seus povos. A matrix Fordlândia torna-se, nesse sentido, um padrão (imposição de uma lógica de tempo, de extração e de padrão de controle) a ser seguido por seus pares contemporâneos (hidrelétricas, mineradores, sojeiros e et cetera). Na demanda global de extração fóssil, agridem o sistema metabólico da floresta, quebrando seu metabolismo e o dos sujeitos que moram nela.
Entre o empreendimento de Ford na Amazônia e governo Bolsonaro, uma mesma racionalidade parece atravessar a lógica dos empreendimentos capitalistas. Talvez a noção da natureza como obstáculo, o desprezo às diferenças, a forma autoritária e antidemocrática de tomada de decisão e a indiferença para com a vida.
A síntese feita por Bruno Malheiro e Valter Cruz sobre a racionalidade bio/necropolítica dos grandes projetos na Amazônia nos ajuda a entender esse atravessamento histórico de formas violentas que forjaram o capitalismo na Amazônia. Só interrompemos essa história de destruição ouvindo seus povos originários. Ainda que “ouvir os povos” seja apenas uma parte da história agora. Considerando que estes são já minoria na região.
Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, e coordena o Programa de Português no Departamento de Línguas Modernas e Linguística da Universidade Estadual da Florida. É diretor do documentário “Beyond Fordlândia”.