TAP: o investimento falido de um Estado
De que falamos exatamente quando o atual Governo propõe resgatar a TAP e opta por investir 4 mil milhões de Euros do Orçamento do Estado numa companhia que sempre deu prejuízo e que já custou tantos milhões de Euros e de Escudos ao contribuinte ao longo da sua história?
Em declarações recentes, Teodora Cardoso, ex-presidente do Conselho das Finanças Públicas, comentou o resgate da TAP, que corresponde a 4% da despesa total do Estado, e manifestou ter dúvidas sobre se vale a pena salvar a TAP. Argumentou que, apesar de não ser especialista na matéria, o “boom” turístico do país não se deveu à transportadora aérea. Noutro contexto, o webinar “Turismo Industrial de Portugal”, de 29 de Janeiro, serviu para Luís Araújo, presidente do Turismo de Portugal, considerar que a primeira lição a retirar da pandemia é a de que o turismo é uma atividade frágil que vive de toda uma envolvente. Ou seja, vive de toda uma proposta e de experiências que não se resumem apenas aos meios de transporte existentes para esse destino. No limite, chegado a um país sem atividade num avião da TAP resgatada da bancarrota, o turista faz exatamente o quê?
Combinando ambas as perspetivas – a financeira e a macro-económica –, é inegável a importância do Turismo para Portugal: foi a nossa maior atividade económica exportadora em 2019 e as receitas geradas pelo setor contribuiram em 8,7% para o PIB nacional. É entendível – mesmo exigivel – que o Estado contemple apoios, investimentos, estimulos, infra-estruturas e incentivos a este setor vital e de sucesso. Neste âmbito, diria até que se deveria canalizar uma parte desse esforço para regiões periféricas onde o Turismo se encontra menos desenvolvido e tentar criar condições propícias a uma maior repartição do investimento privado que se concentra, sobretudo, no litoral e nas grandes cidades. Tendo em conta que o turismo representa uma multitude de atividades associadas – hotelaria, restauração, transportes, atividades de lazer e culturais, congressos, feiras, agências de viagem, infra-estruturas, entre tantas outras –, todas elas contribuem para aquilo que é o destino Portugal.
A TAP é apenas uma peça deste puzzle com uma missão específica: o transporte aéreo. Para a maior parte das regiões do nosso país, nem sequer é a mais importante naquilo que é a sua missão. Vejamos: dos mais de 60 milhões de passageiros que, em 2019, passaram pelo conjunto dos aeroportos nacionais, apenas 17 milhões – menos de um terço – o fizeram a bordo de um avião da TAP. Para melhor ilustrar: no aeroporto de Faro, porta de entrada para a região líder nas dormidas internacionais e a região onde o Turismo mais peso tem, acolheu 9 milhões de passageiros em 2019. Desses, pouco mais de 300 mil voaram na única rota oferecida pela TAP para o Algarve. Os restantes 8,7 milhões viajaram nas 130 rotas anuais e sazonais operadas pelas 30 companhias que servem o aeroporto – algumas com base operacional em Faro. No outro extremo, se analisarmos o caso da Portela, onde a TAP concentrou, em 2019, 88% da sua capacidade real medida tecnicamente em ASKs (n.º de lugares x distância), há que descontar dois efeitos perversos dessa estratégia:
- Contrariamente às restantes companhias para quem Lisboa é, sobretudo, ponto de origem ou de destino (ou seja, não é uma plataforma de passageiros em trânsito), no caso da TAP, a operação dita de “hub” na Portela significa que uma parte significativa dos seus passageiros – cerca de 4 milhões – apenas usaram a companhia e a Portela como ponto de passagem. Sem “stopover”– ou seja, desembarcando de um voo para embarcar de imediato no voo seguinte – e, consequentemente, sem nenhum contributo real para a vasta indústria que define o turismo.
- Por outro lado, esta operação de “hub” da TAP implica que a empresa ocupa uma grande parte das faixas horárias (“slots”) mais cobiçados do aeroporto de Lisboa – muitas vezes com aviões de pouca capacidade para ligações a cidades secundárias e outras vezes para destinos com uma alta percentagem de passageiros em trânsito (chega aos 99% nalgumas rotas). Está assim criado um ilusório e aparente esgotamento da infraestrutura – em parte justificado por passageiros que apenas conetam de um voo para outro e também pela pressão de ter toda uma frota de 100 aviões a querer descolar e aterrar em faixas horárias semelhantes para permitir o tal tráfego de ligação. Este congestionamento aparente da Portela tem impedido, nos últimos anos, que novas companhias aéreas encontrem espaço físico disponível para aterrar na capital. Apesar deste obstáculo também prejudicar a expansão da TAP, acaba por beneficiá-la: sendo a TAP responsável por mais de 50% dos movimentos da Portela (com aviões que vão dos 70 aos 300 lugares), tem uma flexibilidade para mudar de rotas, aviões e frequências que mais nenhuma companhia tem e garante, ao mesmo tempo, que o aeroporto permanece bloqueado à concorrência e que não pode crescer ao verdadeiro ritmo da procura por Lisboa.
De que falamos exatamente quando o atual Governo propõe resgatar a TAP e opta por investir 4 mil milhões de Euros do Orçamento do Estado numa companhia que sempre deu prejuízo e que já custou tantos milhões de Euros e de Escudos ao contribuinte ao longo da sua história? Servirá esse resgate para assegurar a conetividade aérea de todo o país? Não propriamente: o plano prevê reduzir frota e pessoal em um terço, pelo que será impossível manter a mesma rede, a mesma conetividade e o mesmo volume de passageiros. Já com o desaparecimento da TAP, as preciosas faixas horárias da Portela libertar-se-iam para outras companhias que querem de fato voar para Lisboa (e não apenas transitar passageiros de um avião para outro) e libertar-se-iam também os direitos de tráfego aéreo exclusivamente ocupados pela TAP para alguns destinos fora da UE, abrindo a possibilidade para outras companhias operarem – algumas dessas companhias serão portuguesas ou baseadas em Portugal e com esse crescimento virá a contratação de novos funcionários. Se, ainda assim, alguns destinos estratégicos ou importantes ficarem excluídos, o Estado pode assumir o seu papel de estimulador do mercado através de um programa de incentivos aberto a qualquer companhia para uma rota específica. O objetivo será conquistar uma rota concreta, o custo desse esforço será limitado no tempo e no valor e os resultados mensuráveis.
Servirá esse resgate para manter o emprego no Turismo? A TAP empregava cerca de 10 mil funcionários em 2019 e prevê-se que, mesmo com este resgate astronómico, reduza os seus quadros para 7 mil. Por isso, sim, 4 mil milhões de Euros vão manter 7 mil empregos de forma pouco sustentável tendo em conta o historial de décadas de prejuízo da companhia. Em 2019, o emprego no turismo em Portugal representou quase 350 mil postos, todos eles colocados à prova e em risco pela pandemia. É manifestamente desproporcional e desigual o esforço público proposto para salvar 7 mil destes funcionários e é um erro grotesco pretender atribuir a uma única companhia aérea local a existência de toda uma indústria nacional. E sabemos também, por intuição, que não é o avião da TAP que vai colocar os turistas ou as pessoas novamente nos aviões, seja lá de que companhia for.
Para termos uma ideia comparativa do que representa o valor deste resgate:
- O custo atribuido à Expo 98 foi de 5 mil milhões de Euros – incluindo nesse montante as acessibilidades como a ponte Vasco da Gama e a Gare do Oriente;
- Estima-se que o custo do aeroporto de Montijo seja de 1,3 mil milhões de Euros;
- A despesa orçamental anual para a Saúde é de apenas três vezes mais do que a ajuda proposta para a TAP.
A título profissional, enquanto consultor em aviação comercial, observo a história de sucesso de aeroportos como o do Porto, Faro ou Funchal que tiveram de lidar, no passado recente, com o abandono, mais ou menos repentino, de várias rotas sem escalas pela TAP (ou seja, sem ter de passar por Lisboa). Havia, nessa altura, menos concorrência, menos alternativas e Portugal ainda não era sequer o destino galardoado que é hoje. Esses aeroportos conseguiram, mesmo assim, basear operações de outras companhias e posicionaram-se competitivamente no mercado internacional, reduzindo drasticamente a sua dependência de uma companhia aérea específica para estarem conetados. Observo vários exemplos internacionais de países que decidiram, com critérios de racionalidade e não emocionais, não auxiliar as “suas” respetivas companhias aéreas. Não cabe ao Estado ser piloto, nem gestor.
Enquanto cidadão não especialista em matérias orçamentais e de finanças públicas, sou da opinião que os grandes investimentos do Estado deverão ser sempre orientados para a promoção e defesa da Saúde, da Justiça, da Segurança, da Educação, do Ambiente, do Futuro e criar as infra-estruturas necessárias e adequadas para tal. Na economia e no turismo, em particular, o Estado deveria alternar o seu papel entre regulador, facilitador, promotor, estimulador e atenuador de desigualdades de toda a natureza. É para isso, senhores ministros, que precisariamos urgentemente dos 4 mil milhões de Euros.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico