Os países que se estão a abrir aos turistas vacinados. Teremos um “passaporte de vacinação”?
Das Seychelles ao Chipre ou Islândia, somam-se países a dispensar os turistas vacinados de quarentenas ou restrições. Enquanto isso, avança o debate, com prós e contras, da criação de um passaporte ou certificado de vacinação contra a covid-19.
Foram vários os países que, no último mês, decidiram abrir fronteiras e permitir a livre circulação no território a quem tiver sido administrada a vacina contra a covid-19, incluindo Ilhas Seychelles, Estónia, Roménia e Islândia. O Chipre foi o primeiro país a anunciar a implementação da medida, mas só deverá entrar em vigor a partir de Março.
Nos outros países, onde se integram ainda a Geórgia e a Polónia, num mapa que parece expandir-se a cada semana, a medida tem efeitos imediatos. Os viajantes internacionais que apresentem um documento comprovativo da toma da segunda dose da vacina, administrada pelo menos duas semanas antes da chegada ao país (o número exacto de dias pode diferir de país para país), poderão pisar solo nacional e “furar” as medidas de contingência impostas aos restantes visitantes, incluindo períodos de quarentena e apresentação de testes negativos à covid-19.
Em alguns casos, o aliviar das medidas aplica-se a todos os viajantes vacinados, independentemente do país de origem, noutros abrange apenas quem chega de um país previamente autorizado (caso da Islândia, que mantém fronteiras fechadas com o mundo, à excepção dos países do Espaço Económico Europeu e Suíça). E há governos que aceitam todas as vacinas no mercado, enquanto outros apenas aquelas aprovadas pela União Europeia (ver caixa).
O passaporte ou certificado de vacinação é uma tendência que começa a surgir no mundo das viagens como tentativa de retomar a actividade económica e turística sem pôr em causa a saúde pública, aliviando restrições a quem o apresente. Há empresas que querem mesmo tornar a vacinação obrigatória para aceder aos seus serviços – caso da Saga, uma empresa britânica de cruzeiros, onde só deverão entrar a bordo passageiros que tenham recebido a segunda dose da vacina há pelo menos 14 dias (o anúncio provocou tanta polémica que a empresa teve de fechar ao público a conta de Twitter, refere a CNN, e, dado que as viagens da empresa só deverão ser retomadas em Maio, não é certo que a medida vá para a frente).
Em Novembro, também o director executivo da Qantas, companhia aérea australiana, abria caminho para a obrigatoriedade da vacina ao afirmar que, “no futuro”, os clientes de voos internacionais teriam de provar estarem vacinados contra o coronavírus para poderem embarcar sem, contudo, apontar uma data para a implementação da nova regra. E a CTS Eventim, empresa internacional com sede na Alemanha, ligada à produção de eventos e venda de bilhetes para espectáculos, já afirmou estar a planear limitar a prestação do serviço a quem estiver imune ao vírus.
Ideia ganha força em todo o mundo
A intenção não é novidade. Já na Primavera se discutiam “certificados de imunidade” para quem tivesse superado a infecção e apresentasse anticorpos contra o vírus – na Islândia, por exemplo, quem der provas de já ter tido covid-19 também fica isento de todas as medidas de testagem e quarentena à chegada ao país – mas o início da vacinação um pouco por todo o mundo veio retomar – e acelerar – a discussão.
À medida que o mundo se aproxima de um ano de pandemia (declarada pela Organização Mundial de Saúde a 11 de Março de 2020), com uma terceira vaga sem fim à vista em muitos países e um processo de vacinação repleto de atrasos e percalços, o “passaporte de vacinação” volta a ganhar força, último reduto de esperança num regresso do turismo a tempo do Verão.
Alguns países estão mesmo a avançar com a criação de um certificado de vacinação, entregue aos seus cidadãos após a tomada da segunda dose da vacina, como Israel ou Dinamarca (neste caso, em versão digital, actualmente em desenvolvimento), adiantando-se à possível exigência da documentação por parte de outros países (ainda que não o coloquem como excepção de entrada nos próprios territórios). Nos Estados Unidos, também o novo presidente, Joe Biden, já pediu às agências governamentais que “avaliem a viabilidade” de vincular os certificados de vacinação contra a covid-19 a outros documentos de vacinação e a possível digitalização dos mesmos.
No quadro da União Europeia, o debate foi lançado pelo primeiro-ministro grego, numa carta endereçada à presidente da Comissão Europeia no início de Janeiro, apontando como “prioridade fundamental” a necessidade de criar um certificado aceite por todos os Estados-membros. “Embora não tornemos a vacinação obrigatória ou um pré-requisito para a viagem, as pessoas que foram vacinadas devem ter liberdade para viajar”, defendia Kyriakos Mitsotakis. A medida, descrevia, seria “um incentivo positivo” à vacinação.
Dias depois, em Lisboa, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, não se quis comprometer com a proposta, ainda que não a descarte por completo. “É absolutamente fundamental que quem seja vacinado tenha um certificado, é uma necessidade médica”, apontava Von der Leyen. No entanto, ao nível político e jurídico, seria necessário “discutir” a criação de “regras comuns” que assegurassem “o equilíbrio justo e igualitário”. “Como é que se garante o respeito pelos direitos daqueles que não tiveram acesso à vacina e que alternativas se oferecem a quem, por razões legítimas, não a recebeu?”, questionava, uma semana depois, no Parlamento Europeu.
Médicos garantem faltar provas de eficácia
A intenção de criar regras de acesso diferentes para quem tenha recebido a vacina é controversa e tem gerado aceso debate. O Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC) aponta o potencial discriminatório. “Nunca se deve exigir a vacinação para conseguir um emprego ou viajar”, exemplificava a presidente-executiva do conselho, Gloria Guevara, num painel de discussão da agência Reuters sobre a temática no início de Janeiro. “Se é preciso estar vacinado antes de viajar, isso leva-nos à discriminação.”
As bases para a implementação de um sistema de passaporte de vacinação, no entanto, já existem até certa medida, uma vez que são vários os países que exigem a toma de determinadas vacinas antes da entrada no país (actualmente, apenas duas são obrigatórias, dependendo do país: febre-amarela e meningite meningocócica). A própria Organização Mundial de Saúde criou há várias décadas o Certificado Internacional de Vacinação ou Profilaxia, um registo oficial de vacinação reconhecido internacionalmente. No entanto, a situação não pode ser extrapolada para a vacinação contra a covid-19, defendem vários especialistas.
As principais reservas – e críticas – prendem-se, por um lado, com “a disponibilidade limitada de vacinas” (o que coloca questões éticas ao nível da equidade, entre grupos populacionais e entre países, uma vez que em vários estados a campanha de vacinação ainda nem sequer arrancou) e, por outro, com as “incógnitas cruciais” no que toca à sua eficácia na redução da transmissão do vírus, aponta a Organização Mundial de Saúde (OMS). A instituição defende, por isso, que “a prova de vacinação não deve isentar os viajantes internacionais de cumprir outras medidas de redução de risco”. Para os médicos da OMS, a vacina não será remédio para o sector do turismo – nem escapatória para viajantes – até que seja atingida a imunidade de grupo a nível mundial, o que, acreditam, levará anos.
Ao PÚBLICO, Miguel Oliveira da Silva, médico e ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, defendia que “não faz sentido pessoas vacinadas terem mais liberdade para o que quer que seja”. “A vacina é contra a covid, não é contra a infecção assintomática”, explicava no final de Janeiro, a propósito da discussão do tema a nível europeu. A eficácia da vacina foi comprovada em relação ao desenvolvimento da doença entre pessoas vacinadas mas “não há nenhuns dados sobre a prevenção da transmissão” do vírus entre quem já recebeu a vacina, apontava.
Ainda que muitos especialistas antevejam que esta possa reduzir o risco de transmissão, dado acontecer o mesmo com outras vacinas, “isso não foi visto, não foi estudado” para a vacinação contra a covid-19, contrapõe Miguel Oliveira da Silva. De acordo com um artigo entretanto publicado pela Universidade de Oxford, a vacina desenvolvida pela universidade britânica e pela farmacêutica AstraZeneca tem potencial para reduzir a transmissão do vírus em 67% após a primeira dose, segundo uma análise preliminar aos ensaios clínicos, actualmente em revisão.
Para Miguel Oliveira da Silva, há ainda um outro factor a ter em conta: “ninguém sabe” durante quanto tempo a vacina confere protecção contra a doença. O Conselho de Ética alemão já veio opor-se ao aliviar de restrições: “Neste momento, não se deve retirar as restrições estaduais às liberdades das pessoas vacinadas, uma vez que não é possível avaliar de forma confiável a infecciosidade”, afirmava Alena Buyx, directora do conselho numa conferência de imprensa no início de Fevereiro.
Há ainda quem aponte a existência de diferentes vacinas, com diferentes níveis de eficácia, assim como o adiamento da administração da segunda dose em alguns casos (por decisão do governo ou atrasos na produção) e os efeitos que isso poderá trazer ao nível da eficácia da inoculação ou da transmissão do vírus.
Como fica a privacidade num “passaporte” universal e digital?
À medida que o processo de vacinação for avançando um pouco por todo o mundo, e caso surjam mais estudos que atestem a eficácia das diferentes vacinas na redução da transmissão da covid-19, são muitos os que defendem que os “certificados de vacinação” vão tornar-se requisito inevitável para o retomar da normalidade, quer nas viagens a nível internacional, quer no acesso a eventos de massas ou espaços públicos.
A questão não estará tanto em prever se estes vão ou não tornar-se uma exigência um pouco por todo o mundo, mas sim quando e de que forma. Para a Organização Mundial do Turismo, é fundamental “intensificar a coordenação, no âmbito do Regulamento Sanitário Internacional, dos certificados de vacinação para garantir a monitorização atempada, definição e implementação de princípios, protocolos e documentos comuns e harmonizados digitalmente.”
São várias as empresas e entidades internacionais a trabalhar na criação de um sistema digital, acessível a partir de uma aplicação móvel e universalmente aceite que, por um lado, proteja a privacidade dos cidadãos e a confidencialidade dos dados e, por outro, que seja acessível a quem não tenha um smartphone, por exemplo.
A Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) está a desenvolver um passe digital de viagem (Travel Pass Initiative) que permite aos passageiros inserir a documentação relativa a vacinas e testes à covid-19, exigida por companhias aéreas e governos, entre outras funcionalidades, de forma a agilizar os processos de embarque e controlo fronteiriço, e a aplicação vai começar a ser testada em breve pela Ethiad Airways e pela Emirates.
Também a IBM está a desenvolver o seu próprio Passe de Saúde Digital. E o Fórum Económico Mundial, em parceria com a Commons Project Foundation, uma organização sem fins lucrativos sediada na Suíça, está a testar um sistema semelhante, chamado CommonPass – neste caso, um código QR seria gerado para poder ser mostrado às autoridades. Na concorrência ao mercado dos “passaportes de saúde digitais” está ainda a VeriFLY, com uma aplicação móvel com funcionalidades parecidas, já em fase de testes nos voos entre Londres e os Estados Unidos operados pela British Airways.
Independentemente do sistema utilizado, é provável que o “passaporte de vacinação” venha para ficar e, no futuro, seja apenas mais uma rotina a ter em conta nas viagens. Pelo menos enquanto não for atingida a imunidade de grupo a nível mundial, o que pode levar anos.