Os muros que resistem à pandemia
Recusar a generosidade dos médicos reformados com barreiras administrativas é um mau exemplo por estes dias, em que solidariedade é tão precisa. E uma prova de como o país precisa de se livrar de vez da cultura da licença e da religião do alvará, que tanto o tolhem.
Há momentos em que a realidade se impõe aos dogmas e foi por isso que a desgraça da pandemia acabou por derrubar os muros que a ministra Marta Temido, parte do Governo e os partidos mais à esquerda erigiram entre o Serviço Nacional de Saúde e o sector privado. Mas há outros muros que nem a aflição ou a pressão dos contágios conseguiram derrubar: o muro quase inultrapassável para os médicos estrangeiros que querem trabalhar em Portugal. Ou o muro que a burocracia e a indiferença estão a erguer aos médicos reformados que se voluntariaram para ajudar no combate à pandemia.
Podemos encontrar mil e uma explicações para a dificuldade em derrubar estas barreiras; mas, no final, o que sobra é sempre o retrato de um país onde o imobilismo das regras, a força do lobby ou o privilégio da coutada resistem até num tempo em que se exige flexibilidade, capacidade de adaptação e urgência nas respostas.
Cada caso é um caso, e é arriscado compará-los pela natureza, complexidade ou justificação. A aversão aos privados que cinco anos de influência do Bloco e do PCP fez germinar é um anacronismo ideológico que uma grande fatia da população com seguros de saúde há-de considerar bizarro. As exigências que se colocam ao acesso à profissão dos médicos estrangeiros, alguns deles com currículos em reconhecidos hospitais canadianos, brasileiros ou americanos, combinam tanto o absurdo de um país que recusa o jogo mundial da atracção de profissionais qualificados como a cautela para que os portugueses não sejam tratados por médicos duvidosos.
Já o caso dos médicos reformados é talvez o mais difícil de entender e de aceitar. Porque configura um insulto à generosidade de portugueses que se dispõem a sair do conforto das suas reformas para ajudarem outros portugueses em dificuldade.
Podemos admitir que no inferno da pandemia os serviços administrativos da Saúde, ou os hospitais, estão assoberbados e sem capacidade de responder a solicitações como esta. Mas aceitar esta probabilidade como justificação seria considerar o gesto dos médicos reformados como um procedimento banal. Não é. É um acto de solidariedade. É uma prova de dedicação que merece reconhecimento e elogio.
Até porque o que eles pedem não é um lugar na linha da frente, onde se exige mais ciência ou energia: eles dispuseram-se a apoiar de graça os médicos de família que fazem inquéritos epidemiológicos, a ir para hospitais de campanha ou a fazerem acções de educação. Recusar a sua generosidade com barreiras administrativas é um mau exemplo por estes dias, em que solidariedade é tão precisa. E uma prova de como o país precisa de livrar da cultura da licença e da religião do alvará, que tanto o tolhem.