Fotografia
Somaya foi vítima de mutilação genital. Este é o seu grito de revolta
A fotógrafa egípcia Somaya Abdelrahman tinha 10 anos quando foi submetida ao corte. No Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, partilha a sua história e o projecto A Permanent Wound, em que retrata outras vítimas deste procedimento, no Egipto.
Somaya Abdelrahman tinha 10 anos quando foi submetida a mutilação genital feminina (MGF). Nesse dia, sem saber o que a esperava, vestiu o seu vestido favorito, provou o seu prato predilecto e viu aqueles desenhos animados que a mãe nunca a deixava ver. Mais tarde, mãe e filha dirigiram-se a casa da amiga Shayma. "Um homem, que me disseram ser médico, deu-me três injecções e cortou o meu clítoris", descreve a fotógrafa egípcia, em entrevista ao P3. "Foi uma mutilação em grupo, ouvi muitos gritos. Não me lembro de grande coisa, mas fiquei desfigurada e ainda hoje tenho problemas relacionados com o procedimento." No final, a sua mãe deu-lhe os parabéns. "Agora já és uma noiva", recorda, com mágoa.
Somaya abandonou o Egipto há poucos anos. "Ainda tenho pesadelos em que lá estou. Quando saí estava a fugir da dor. Da violência da mutilação genital, da violência da perseguição política e da hostilidade presente no espaço público." O projecto fotográfico A Permanent Wound, que nasceu em 2018, é um grito de revolta contra a realidade da MGF, que continua a repetir-se por todo o mundo.
No Egipto, de acordo com dados da Unicef de Fevereiro de 2020, 87 em cada 100 mulheres ou meninas egípcias já foi submetida a este procedimento — uma das taxas mais elevadas do mundo, superadas apenas no Mali (com 89%), na República da Guiné (95%) e na Somália (98%). "A lei egípcia proíbe a MGF, mas os médicos continuam a inventar desculpas para a realizar, motivados por crenças religiosas e pelo lucro", esclarece a jovem fotógrafa. "As parteiras também continuam a executar esta crueldade como fonte de rendimento. E fazem-no com orgulho. Uma delas disse-me: 'Eu ajudo as meninas a manter a sua honra e garanto-lhes melhores chances no casamento'."
Em 2018, quando deu início ao projecto, visitou a menina Doa e a sua mãe em Fayoum, a 130 quilómetros a sudoeste do Cairo. "Doa tinha sido submetida à MGF aos 12 anos. A sua mãe perguntou à minha tia, que é professora de Corão, o que deveria fazer com a sua outra filha, mais nova, uma vez que Doa ficou com problemas urinários depois da intervenção. A minha tia aconselhou-a a circuncidar a filha mais nova num médico. Eu implorei-lhe que não o fizesse, mas a mãe respondeu: 'Se não fizer isto, ela andará fora de controlo e vai acabar por dormir com todos'." Alguns pais, refere, encaram a MGF como uma imposição religiosa, "apesar da fatwa [decreto religioso] que foi emitida por estudiosos do Corão" em sentido contrário, mas também como uma forma de controlar o desejo sexual das jovens mulheres.
"Geralmente, o procedimento é realizado colectivamente durante o Verão. Durante uma semana ou mais, as meninas não podem sequer caminhar." Os meios e as técnicas variam de lugar para lugar, refere a fotógrafa, "mas há lugares onde nem sequer usam anestesia". "Alguns utilizam uma faca ou lâmina especial e nem sequer a esterilizam ou desinfectam. O número de vítimas mortais deste procedimento é desconhecido, uma vez que as mortes não são atribuídas à MGF, mas sim a outras causas." As consequências físicas e psicológicas que resultam deste procedimento são diversas. A dor intensa, o choque e a força que são aplicados contra a vontade da menina podem dar origem a situações de stress pós-traumático, ansiedade, depressão e mesmo perda de memória, segundo a Organização Mundial de Saúde. As consequências físicas imediatas vão desde a inchaço dos tecidos, hemorragias, febre; a longo prazo, as vítimas podem sofrer de problemas urinários, vaginais, dor intensa durante as relações sexuais, complicações graves durante o parto que podem conduzir à morte.
Somaya é uma activista. Não tem medo de se expor e quer dar voz a outras mulheres que passaram pelo mesmo. "Continuo à procura de mulheres como eu, que sofreram mutilação genital", refere. Uma tarefa difícil, por vezes desagradável. "Deixei mensagens em fóruns turcos, dirigidos a falantes de árabe, e uma mulher respondeu-me, acusando-me de ser imoral e de atacar a religião." A fotógrafa mantém-se firme porque tem uma missão. "Quero ser a voz de quem não tem voz. Infelizmente, muitas pessoas acreditam que a mutilação genital feminina é irrelevante. Mas eu considero importante mobilizar a sociedade civil no sentido de agir contra esta prática e dar espaço às mulheres para falarem do trauma do corte. Se toda a sociedade tiver noção das consequências, será mais fácil." Somaya acredita que utilizar a fotografia é uma forma de garantir visibilidade a este tema e a este grupo de mulheres sub-representadas. "Ajuda, pelo menos, a dar início a uma discussão, a consciencializar."
Recentemente, Somaya escreveu uma carta à sua mãe, onde expunha o seu trauma. "Quando a visitei, vi nos seus olhos que ela se sente mal por me ter causado tanta dor, tanto dano. Mas eu jamais poderei esquecer. Mesmo que a mente pudesse esquecer, o corpo iria para sempre lembrar."