Eutanásia: um processo legislativo inexplicável
Aquilo que o Parlamento aprovou está indelevelmente marcado por um processo legislativo que não cumpriu mínimos exigíveis de responsabilidade, seriedade e ponderação. Isso certamente ajuda a explicar o resultado a que se chegou. Como se costuma dizer, pelos frutos se conhece a árvore.
Em minha opinião, um dos compromissos quebrados pela lei da eutanásia aprovada no Parlamento (em rigor, ainda um decreto da Assembleia, que só se tornará lei com a promulgação; na sua versão actual, está disponível aqui) é o compromisso com a Constituição. Este texto, porém, não é sobre isso, mas sobre o modo como se chegou a este diploma.
Causa enormes perplexidades o processo legislativo que levou à aprovação, no Parlamento, deste diploma que (i) despenaliza e (ii) legaliza, dentro de certos pressupostos, a eutanásia. Digo isto com todo o respeito pelos intervenientes nesse processo legislativo, alguns deles, certamente, bem intencionados; e não esqueço aqueles deputados que, por vezes indo corajosamente contra o sentido maioritário da sua bancada, votaram contra.
Em 2018, a eutanásia foi chumbada no Parlamento. Cerca de um ano depois, em 2019, a memória recente dessa recusa (que aconselharia mais debate e ponderação) e o modo como decorreu a campanha eleitoral para as eleições legislativas convenceram os eleitores de boa fé de que os dois principais partidos não iriam permitir que a questão fosse aprovada na presente legislatura (alguns partidários da eutanásia têm feito algumas tíbias sugestões em contrário, que falam por si). Este compromisso eleitoral tácito foi logo quebrado, com uma remissão para a “consciência individual” de cada deputado, como se a Constituição pudesse ser lida como sendo indiferente à questão da eutanásia, e a conformidade à Constituição fosse uma questão de consciência.
Entre outras posições contrárias à eutanásia, em Junho de 2020, 15 professores catedráticos de Direito Público emitiram uma declaração conjunta expressando a sua convicção de que a eutanásia viola a Constituição portuguesa. Esta declaração, inédita pelo número, diversidade e qualificação dos seus autores, não mereceu dos parlamentares qualquer reacção, a avaliar pela informação que (não) se retira do site do Parlamento. Uma declaração que teve entre os seus subscritores pessoas como Jorge Miranda (membro da Assembleia Constituinte e da Comissão Constitucional, órgão que antecedeu o Tribunal Constitucional), Fernando Alves Correia (ex-juiz conselheiro do Tribunal Constitucional), ou Carlos Blanco de Morais (ex-assessor jurídico da Presidência da República), só para mencionar alguns, não parece ter justificado qualquer suspensão reflexiva, pedido de audição ou parecer. É flagrante o contraste com o processo legislativo de 2016-2018 (que levou ao chumbo em 2018, recordemos), durante o qual foram ouvidos vários académicos (e com o processo legislativo de outros diplomas, muito menos delicados e complexos). Desta vez, o Parlamento simplesmente não quis saber.
Ainda em matéria de pareceres e opiniões, convém, também, que todos saibamos que a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros e o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida deram pareceres desfavoráveis aos projectos de lei, por razões de fundo, que não foram ultrapassadas na versão final da lei (os pareceres estão disponíveis aqui e vale a pena lê-los). Assim, por exemplo, uma lei que prevê a intervenção de três médicos no processo de antecipação da morte foi aprovada com parecer desfavorável da entidade pública que regula o acesso e exercício da profissão médica, e, em geral, dos profissionais que têm a seu cargo a defesa da saúde e da vida das pessoas, bem como do órgão consultivo independente mais relevante nestas matérias. Isto é alarmante só por si. Acresce que não se encontra no site do Parlamento uma única palavra de contradita desses pareceres. O grupo de trabalho criado no Parlamento sobre esta matéria não produziu qualquer reflexão autónoma escrita, publicamente disponível, que responsabilizasse os deputados pelo resultado final, e que atenuasse a sensação de vertigem e “fuga para a frente” que caracterizou este processo legislativo.
Por fim, já em 2021, depois de a pandemia ter revelado os limites do sistema de saúde, o Parlamento, com uma pressa que não se entende, aprova uma lei que, entre outras coisas, dispõe que “ao doente é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos” (artigo 3.º, n.º 6), e que o mesmo é sempre informado dos “tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos” (artigo 4.º, n.º 1). São normas que, além de tudo o mais, no presente contexto e, seguramente, no contexto dos próximos anos, não podem deixar de causar profunda preocupação quanto à sua efectividade. Do ponto de vista jurídico-constitucional, muito haverá a dizer sobre uma lei que encaminha as pessoas para um acto irreversível, sem manifestamente fazer o suficiente para preservar a sua vida.
Independentemente das inultrapassáveis questões de constitucionalidade que, a meu ver, se colocam, cumpre dizer com clareza que aquilo que o Parlamento aprovou está indelevelmente marcado por um processo legislativo que não cumpriu mínimos exigíveis de responsabilidade, seriedade e ponderação. Isso certamente ajuda a explicar o resultado a que se chegou. Como se costuma dizer, pelos frutos se conhece a árvore.