A propósito da covid-19, repensar as Forças Armadas
As Forças Armadas têm um préstimo social enorme. Na hora de maior aperto, é para elas que nos viramos, e bem. Quando a gravidade da situação exige análise objectiva, disciplina, hierarquia, compromisso com uma missão e planeamento rigoroso, é a tropa que chamamos.
Soube-se ontem que, após a demissão de Francisco Ramos da coordenação do plano de vacinação contra a covid-19 (numa atitude digna, por saber que também no hospital a cujo conselho de administração preside terá havido administração indevida de vacinas), a coordenação do plano ficará a cargo do vice-almirante Henrique Gouveia e Melo. Não por acaso, o Presidente da República terá defendido que a saída de Francisco Ramos fosse aproveitada para envolver mais as Forças Armadas, e também o PSD e o CDS terão pressionado para que fosse o militar a substituir o administrador hospitalar.
As Forças Armadas têm vindo a desempenhar uma missão crucial no combate à pandemia, que tem sido discreta ou passado despercebida por muitas vezes, a meu ver, não ter tido a cobertura mediática que devia e merecia. As Forças Armadas têm recebido doentes covid nos seus hospitais, montado hospitais de campanha, colaborado nos rastreios de contactos, na logística da vacinação e ajudado a suprir várias necessidades da administração pública. Para um institucionalista como eu, este papel desempenhado pelas Forças Armadas orgulha mas não surpreende. E não surpreende por duas razões: em primeiro lugar, porque as Forças Armadas portuguesas já nos habituaram a um desempenho de excelência mesmo em condições difíceis e sem que lhes sejam proporcionados os meios devidos; em segundo lugar, porque a noção de serviço faz parte da missão das Forças Armadas.
Constata-se assim aquilo de que praticamente ninguém duvidava: as Forças Armadas têm um préstimo social enorme. Contrariamente à famosa frase, talvez não seja assim tão difícil justificar a existência de um exército em tempos de paz. Na hora de maior aperto, é para elas que nos viramos, e bem. Quando a gravidade da situação exige análise objectiva, disciplina, hierarquia, compromisso com uma missão e planeamento rigoroso, é a tropa que chamamos.
Por tudo isto, e apesar de ainda se estar muito longe do fundo do túnel, no rescaldo da covid devemos proceder a uma reflexão profunda e há muito adiada sobre o papel das Forças Armadas na sociedade e à urgente revalorização das mesmas. Outros pontos de debate poderiam ser apontados, mas penso que as três principais linhas de reflexão dirão respeito aos seguintes:
1. Defesa do país e reserva estratégica
Tomamos sempre por adquirido que a integridade do território não está em perigo, que as Forças Armadas jamais terão que cumprir aquela que é a sua primordial missão e razão de ser: defender o território nacional. A minha geração já não cumpriu o Serviço Militar Obrigatório (já lá irei) e, devido ao relativamente extenso período de paz na Europa, nunca conheceu a realidade da guerra, pelo que a encara como uma impossibilidade. Não o é, e seguramente a possibilidade de guerra não diminui com a desvalorização das Forças Armadas, antes pelo contrário – si vis pacem, para bellum.
Por outro lado, a defesa do país – e dos seus aliados e parceiros – também ocorre com frequência longe do território nacional. As missões no estrangeiro e as forças aí destacadas cumprem o duplo objectivo de defesa nacional e contributo para a paz e estabilidade mundial. Portugal tem desempenhado um papel relevante em diversas missões (sobretudo em África, mas não só), que muito contribui para o prestígio nacional. Também por isso, a qualidade das Forças Armadas é essencial.
Mas, mesmo na ausência de guerra ou de missões externas, a manutenção das Forças Armadas num bom estado de prontidão assume importância por razões de reserva estratégica. A nossa prosperidade económica fez-nos acreditar que bens essenciais que são importados nunca irão faltar. Ora, não é impensável, mesmo fora do quadro de um conflito (convencional ou não), que não seja assim. Paralisações e perturbações do normal funcionamento da economia e das comunicações podem levar à falta ou escassez de bens essenciais, e há exemplos recentes disso em Portugal. As Forças Armadas devem estar preparadas para acudir a estas situações, sendo que isso implica a existência de uma logística que, infelizmente, tem nos últimos anos sido desmantelada em vez de incrementada.
Não será por acaso que o auxílio enviado pela Alemanha a Portugal para auxiliar no combate à covid se consubstancia em equipas de médicos e auxiliares militares, que trazem, entre outras coisas, 150 camas. A capacidade para intervir em situações de crise, em Portugal ou junto de Estados aliados, depende da manutenção permanente de um estado de prontidão e preparação que implica profissionais dedicados ao mesmo.
2. Saúde militar e Sistema Nacional de Saúde
Em tempos, atendendo à dimensão das Forças Armadas – resultante da Guerra Colonial, do PREC e da existência do Serviço Militar Obrigatório –, o sistema de saúde militar era extenso, com vários hospitais em Lisboa, um no Porto e um em Coimbra, entre outros, com grande capacidade, e fornecia ampla cobertura das mais diversas áreas e especialidades. Hoje pouco sobra desse sistema, fruto da unificação dos hospitais dos diversos ramos em Lisboa e a criação do Hospital das Forças Armadas, dividido no Pólo de Lisboa e no Pólo do Porto. O fim do Serviço Militar Obrigatório trouxe uma abrupta queda dos militares no activo, a que se soma a diminuição dos contingentes previstos para cada ramo (apesar dos avisos da chefias militares) e, com o avançar do tempo, diminuirão também os militares na reserva e na reforma, os principais utentes do sistema de saúde militar. Um olhar pessimista diria então que o sistema de saúde militar está condenado a acabar, a tornar-se residual ou a operar através de convenções com outros hospitais.
Só será assim, porém, se o poder política assim decidir. Há uma alternativa e que, a meu ver, se impõe quando se pensa as coisas à escala macro, a longo prazo e considerando o interesse nacional. Como referi, na actual crise de saúde pública o auxílio do sistema de saúde militar ao SNS tem sido um dos principais contributos das Forças Armadas. Não deve esquecer-se também o auxílio do laboratório militar no fabrico de álcool-gel. Por isso, e por razões da reserva estratégica também acima mencionada que as Forças Armadas devem representar, urge que o sistema de saúde militar não desapareça. Além do mais, em crises deste tipo, o sistema de saúde militar é detentor de um know-how indesmentível – exemplo disso é facto de um dos principais comentadores médicos da pandemia, Silva Graça, ter sido oficial-general do Exército.
Porém, e pelo que se disse sobre a diminuição de utentes dos hospitais militares, a capacidade dos mesmos será, em alguns domínios, excedentária. A solução que permite, em simultâneo, salvaguardar e valorizar a saúde militar sem, por outro lado, ter profissionais pagos para simplesmente aguardarem é fácil de ver: estabeleça-se um quadro de cooperação que permita a utilização da capacidade excedentária dos hospitais militares no apoio ao Serviço Nacional Saúde. Por outras palavras, integre-se a saúde militar no Sistema Nacional de Saúde.
3. Serviço Militar Obrigatório
O último e mais espinhoso ponto a (pelo menos) reflectir diz respeito ao Serviço Militar Obrigatório. O SMO foi abolido, a meu ver irreflectida e precipitadamente, muito por pressão das juventudes partidárias, apenas contra a vontade do PCP (honra lhe seja feita). Os jovens, já nascidos na “idade dos direitos” (Norberto Bobbio), tendiam já a desvalorizar a existência de deveres em favor dos direitos, algo que só se terá agudizado. O SMO configurava uma “chatice": um ano de vida nas Forças Armadas.
O tempo encarregou-se demonstrar a imprevidência da abolição. Por um lado, de um ponto de vista prático, as nossas Forças Armadas carecem hoje de efectivos – embora muito por culpa do poder político, que não cria condições para que o ingresso seja atrativo. Por outro lado, a ausência de um mínimo de noção de disciplina e de serviço em muitos dos nossos jovens é bem visível. O SMO tem o potencial de fazer, repensado em moldes modernos, mais pela cidadania e coesão social do que muitas outras (e mais dispendiosas) medidas do Estado. Por isso, fica a questão: pedir aos jovens um ano de serviço a um país que nos providencia, a vida toda, educação, saúde e oportunidades, é pedir assim tanto?