Covid-19: Portugal poderá já ter ultrapassado o pico de contágios, mas “desconfinar” é ainda uma palavra “proibida”
Previsões mostram que Portugal poderá já ter ultrapassado o pico de contágios, embora Lisboa e Vale do Tejo continue a atrasar uma descida acentuada da incidência a nível nacional. Mas especialistas alertam: continuamos com níveis “brutalmente elevados” e não podemos relaxar.
O pico de contágios pelo novo coronavírus em Portugal poderá já ter sido ultrapassado, nos últimos dois dias. Mas há várias ressalvas a fazer: continuamos com “níveis de incidência brutalmente elevados” em termos globais e o verbo “desconfinar” é ainda uma palavra “proibida”, numa altura em que manter as restrições e os cuidados é mais importante do que nunca para combater a covid-19, alertam os especialistas em epidemiologia ouvidos pelo PÚBLICO.
O Alentejo foi a primeira região a ultrapassar o pico de contágios, por volta do dia 21 de Janeiro, tendo-se seguido o Norte, entre o dia 23 ou 24 de Janeiro, e o Centro e o Algarve no dia 25 do mesmo mês. Já Lisboa e Vale do Tejo (LVT), que contabiliza actualmente cerca de 50% dos novos casos a nível nacional, deverá atingir o pico mais tarde, de acordo com dados fornecidos ao PÚBLICO pelo investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) Carlos Antunes.
Em termos nacionais, os dados compilados até ao dia 30 de Janeiro mostram que poderíamos ultrapassar o pico nos dias seguintes, uma vez que a análise implica sempre um certo atraso, pelo que esta segunda-feira, 1 de Fevereiro, “provavelmente já ultrapassámos o pico”, admite Carlos Antunes.
No entanto, adverte o especialista, apenas será possível afirmar com total certeza que já ultrapassámos o pico dos contágios posteriormente, quando for efectivamente possível verificar uma diminuição da incidência e identificá-lo, uma vez que “os dados que estamos a observar hoje reportam a infecções dos últimos quatro, cinco ou seis dias”. Além disso, nota, a análise tem por base “dados limpos”, ou seja, “em que os casos são distribuídos à data de diagnóstico ou de início de sintomas” e não os dados difundidos diariamente pela Direcção-Geral da Saúde, pelo que o facto de Portugal poder já ter ultrapassado o pico de contágios não significa que já tenha ultrapassado o pico da notificação de casos.
Incidência no Norte a baixar desde o dia 24 de Janeiro
Segundo Milton Severo, responsável pelas projecções do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), “no Norte, desde o dia 24 de Janeiro que a média a sete dias de casos diários está a baixar”, tendo passado de 4000 casos no ponto máximo (24 de Janeiro) para 3000 este domingo. Também a 24 de Janeiro, o Centro atingiu um máximo (da média a sete dias) muito próximo dos 2300 casos e, este domingo, desceu para os 1900 casos. Porém, na região de LVT “isso ainda não aconteceu”: “Ainda estamos a subir, tendo atingido a média de casos diários um pouco acima dos 6000.”
Milton Severo nota que “Portugal andou no dia 28 de Janeiro à volta dos 13 mil casos diários e agora está próximo dos 12 mil”. “Ou seja, houve aqui uma pequena desaceleração e provavelmente até poderá já ter atingido o pico, se se confirmar nos próximos dias que o valor continua a descer”, admite o especialista, salientando que o ISPUP trabalha com uma média móvel a sete dias que tem em conta o facto de o número de testes realizados variar ao fim-de-semana.
Em termos de velocidade de desaceleração, o Norte poderá “passar a metade dos casos actuais em cerca de 17 dias”: “Ou seja, tendo em conta que o número actual [de casos diários] anda à volta dos 3000, prevê-se que daqui a 17 dias tenhamos 1500”. Já o Centro “está com uma velocidade de passar a metade de 27 dias, o que é muito lento”. Significa isto que “podemos ter já atingido o pico, mas a descida está a ser bastante lenta, o que quer dizer que vamos ter ainda um período grande em que os números vão ser elevados”, nota o especialista do ISPUP.
Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), concorda que, “a nível nacional, se ainda não atingimos o pico, vamos atingir esta semana”, sublinhando que “onde estamos mais atrasados é em LVT, que poderá apenas atingir o pico na segunda semana de Fevereiro”. Nesta região, a incidência “ainda não parou de subir”, embora esteja a desacelerar devagar — “o que quer dizer que está a tender para um pico”.
Lisboa atrasa a descida acentuada da incidência a nível nacional
O atraso na região de Lisboa a atingir o pico faz com que “o pico a nível nacional seja arrastado” em termos temporais e assuma uma tendência de planalto, em vez de um pico mais “pontiagudo” e de uma descida rápida, afirma Carlos Antunes.
“Naquelas regiões em que o pico é mais acentuado e pronunciado, há uma maior desaceleração e uma maior resposta. Como o nível nacional é uma combinação das várias regiões e temos diferentes velocidades e dinâmicas, e porque LVT contribui actualmente com cerca de 50% de toda a incidência, a própria região de LVT acaba por arrastar o pico nacional. Como tem muito peso, influencia este prolongar do pico por mais tempo e, em vez de ser um pico pontiagudo, é um planalto — ou seja, temos vários dias no máximo da incidência”, conclui Carlos Antunes.
No que diz respeito ao índice de transmissibilidade (Rt), em termos nacionais, “ainda não passou para abaixo de 1, mas está nesse caminho”. Em LVT, o Rt fixou-se em 1,05, enquanto no Norte e no Alentejo já está abaixo deste valor e no Centro e Algarve a rondar o mesmo. Também aqui se verifica que o Rt mais elevado em LVT “está a puxar o Rt nacional para cima”, explica o investigador da FCUL.
Maior desaceleração nos idades escolares
Esta tendência é também visível na análise das faixas etárias e da população activa e não-activa. “A nível nacional, em termos de grupos etários, é também já visível o planalto em todos os grupos, excepto ainda no grupo dos zero aos cinco anos. O primeiro a chegar ao planalto foi o da população universitária, dos 18 aos 24 anos, e os outros seguiram-se. Verifica-se efectivamente, com toda a evidência, um achatar mais pronunciado da curva a partir do dia 27 de Janeiro, cinco dias depois do fecho das escolas. Isso é notório essencialmente nos grupos etários dos seis aos 12 anos e dos 13 aos 17 anos a nível nacional, que foram os grupos que mais diminuíram em termos da variação diária da incidência”, explica Carlos Antunes, destacando, porém, que em LVT “houve uma resistência em todas as faixas etárias” e “a resposta ao fecho das escolas é um bocadinho mais tardia”.
A análise por grupos etários confirma assim, em primeiro lugar, “o atraso no alcance do pico por parte de LVT e, depois, o maior contributo para essa desaceleração por parte dos grupos etários associados às escolas”, diz o investigador da FCUL, que considera que o fecho das escolas foi “determinante”.
Em termos de faixas etárias, Manuel Carmo Gomes destaca que “na região Centro as taxas de incidência na população activa, entre os 25 e os 65 anos, e na população com mais de 66 anos são muito preocupantes”.
“Se somarmos o número de novos casos acumulados nos últimos 14 dias na região Centro entre os 25 e 65 anos e dividirmos pela população que tem essa idade nessa região, obtemos 4700 novos casos por 100 mil habitantes (naquela faixa etária). Se transformarmos isto em percentagem, dá aproximadamente 4,7% das pessoas infectadas nos últimos 14 dias nessas idades na região Centro. E o número equivalente nessa região para as pessoas com mais de 66 anos é de 3750 por 100 mil habitantes, que é também um número muito elevado”, nota o especialista, que admite que estes números possam estar associados à grande quantidade de lares existentes no Centro do país.
Podemos chegar aos números pré-Natal mais cedo do que o pensado
Além disso, é também necessário ter em conta a propagação da nova variante britânica do SARS-CoV-2 em LVT — que, segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, tem já uma prevalência de cerca de 65% — e nas outras regiões.
“Poderemos ter surpresas, mesmo assim, quando esta variante chegar às outras regiões e começar a ter também uma maior prevalência” e impedir uma “descida mais abrupta da incidência”, alerta Carlos Antunes. “Podemos passar o pico se o resultado do confinamento conseguir ter um impacto superior ao impacto da nova variante e é isso que se observa na análise dos grupos etários”, nota.
Neste sentido, o especialista da FCUL defende que não devemos aligeirar as medidas de restrição e é essencial manter o confinamento. “Temos que puxar os contágios para níveis muito baixos e, do ponto de vista do controlo da epidemia, devíamos conseguir ser mais eficientes e ter o menor período possível de fecho da actividade. Ou seja, se formos mais eficazes agora nesta fase em que já estamos a ver que estamos a controlar o contágio, se calhar conseguíamos chegar aos níveis de pré-Natal muito mais cedo [do que o previsto] e isso era muito benéfico quer do ponto de vista do controlo da epidemia, quer do ponto de vista social e económico”, explica.
As previsões apontavam para que chegássemos aos níveis de novos casos de covid-19 pré-Natal em finais de Março e princípios de Abril, mas se mantivermos este ritmo “podemos lá chegar em inícios de Março porque já estamos com uma desaceleração do contágio muito próxima, em termos de resultados, da que conseguimos em Março do ano passado”. “Mas se fôssemos um bocadinho ainda mais além e cumpríssemos estritamente as restrições, provavelmente seríamos muito mais eficazes e se calhar conseguíamos trazer a incidência para níveis de pré-Natal ainda mais cedo”, explica, apelando à responsabilidade individual e comportamento cívico de cada um, por uma questão de saúde pública.
Para Carlos Antunes, “seria um erro começarmos a pensar em aligeirar o confinamento” porque “podemos ter surpresas e ressurgimentos, até porque esta nova variante mostra que não devemos brincar com ela, porque tem uma grande capacidade de contágio”.
Já Milton Severo destaca que, embora a incidência em território nacional possa vir já a diminuir nos próximos dias, é necessário ter em conta que estas previsões são feitas com base “nos cuidados que estamos a ter agora”. “Se, de repente, as pessoas deixam de ter cuidado, isto volta a subir”, diz. Além disso, se a nova estirpe se espalhar e tornar “homogénea em todo o país, poderemos ter que adoptar outras medidas para reforçar e garantir que mantemos um índice de transmissibilidade abaixo de 1”.
“Desconfinar” é palavra proibida: “Níveis de incidência brutalmente elevados”
Apesar de podermos já ter ultrapassado o pico de contágios em Portugal, Manuel Carmo Gomes salienta que “estamos com níveis de incidência brutalmente elevados globalmente e, portanto, agora temos que nos preparar para uma longa descida”. “Desconfinamento” e “desconfinar” são, por isso, palavras “proibidas” por enquanto, para o especialista.
“Acho que é perigosíssimo estar a mencionar esse verbo na situação desgraçada em que nós estamos porque o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não aguenta estes níveis de incidência diária. Temos que descer muito e isso é, no meu entender, estar muitas semanas com um forte confinamento — possivelmente até Março. Atingimos o pico, mas isto não são boas notícias porque este pico está muito alto. Digo garantidamente que para reduzir o número de casos que estamos a ter neste pico, que deve rondar os 15 mil contágios por dia, para metade eu duvido que levemos menos de um mês de confinamento”, diz, assumindo que este é um cenário “optimista” e que mesmo que os números passem a rondar os cerca de 7500 casos por dia este continua a ser um valor “muito alto”. “Acho que se devia proibir usar a palavra ‘desconfinar’ no próximo mês”, conclui.
Quanto à nova variante, Manuel Carmo Gomes defende que, “se nos mantivermos fortemente confinados, não deveremos sentir o seu impacto porque as medidas de confinamento são tão eficazes para a antiga variante como para a nova”, pelo que a variante terá mais dificuldade em viajar geograficamente. “O que vai ser perigoso é quando nós nos começarmos a desconfinar, porque poderemos fazer com que ela se propague e isso vai agravar a situação e pode fazer com que haja um ressurgimento. Mas se nós nos mantermos confinados, o número de novos casos vai descer em todo o país — nuns sítios mais depressa do que noutros e numas idades mais depressa do que noutras.”
O epidemiologista destaca ainda que os dias mais nefastos da pandemia foram os de 25, 26, 27, 28 e 29 de Dezembro, de acordo com as previsões. “Foram os dias em que os portugueses estavam a passar o Natal e estimamos que aproximadamente cinco mil casos que tiveram lugar nesses dias passaram sem ser diagnosticados rapidamente. Eventualmente, alguns terão sido diagnosticados mais tarde, mas provavelmente o que aconteceu foi que as pessoas estavam a passar o Natal com a família, muitas pessoas estavam fora do seu concelho de residência e terão desvalorizado sintomas leves e não quiseram comunicar que estavam com aqueles sintomas e terão escapado. E mesmo que o Rt estivesse igual a 1, cinco mil casos que escapam em dois ou três dias dão origem a outros cinco mil e, portanto, muito rapidamente as coisas disparam, e foi o que aconteceu”, diz.
O especialista admite ainda que “é possível que a nova variante também tenha tido algum papel nisso”. “Mas mesmo que não houvesse uma nova variante, o número de novos casos teria aumentado muito sempre naqueles dias do Natal e a seguir” e, ao aliviarmos as medidas no Natal “com um nível de 3500 casos por dia, que era o nível em que nós estávamos, corremos muitos riscos e o resultado está à vista”.
Ainda faltam mais testes
Quanto à capacidade de testagem, Manuel Carmo Gomes não tem dúvidas de que a percentagem de casos dos testes positivos está ainda elevadíssima, na ordem dos 20%”, sendo que o expectável seria termos uma taxa de positividade a rondar os 5%. “Devíamos multiplicar o número de testes por quatro para conseguirmos ambicionar chegar aos 5 ou 10%. O número de testes está a aumentar, mas deixamos fugir o vírus. Estamos muito aquém de conseguir ter o nível de testagem que era desejável para este nível de contágios”, nota.
Manuel Carmo Gomes não tem dúvidas de que “só há duas maneiras de combater isto”: “Restringir os contágios, a mobilidade e os contactos; e subir brutalmente o número de testes que se fazem por dia ou por semana.” “Era desejável que nós só com os testes conseguíssemos controlar as coisas, mas não conseguimos”, diz, até porque a primeira opção “é a pior, porque mata a economia e destrói a saúde mental das pessoas”. “Mas estamos numa situação tão desesperada que temos que usar as duas armas com toda a força.”