A pandemia como pavio da violência contras as mulheres
Fica claro que a pandemia e a crise que arrastou consigo agravaram os contextos e fatores promotores da violência doméstica, como agravam qualquer desigualdade estrutural da sociedade.
O que suspeitávamos fez-se realidade.
Os dados portugueses relativos à participação de violência doméstica durante a pandemia estão em contraciclo internacional. Enquanto em muitos países as participações de violência doméstica aumentaram durante os períodos de confinamento, em Portugal, diminuíram.
O primeiro caso explica-se pela nova realidade de organização familiar que forçou a uma adaptabilidade nem sempre conseguida, por situações de stress económico, laboral e familiar potenciadoras de conflitos, por uma convivência mais constante e forçada entre vítima e agressor. A casa tornou-se uma panela de pressão sempre prestes a explodir.
Já a diminuição de participações de violência doméstica, de que Portugal não é, reconheçamo-lo, caso único, rapidamente foi alvo de análises, estudos e teses explicativas. A mais consensual é a tese do medo. O confinamento das famílias propiciou as condições perfeitas para um maior controlo dos agressores sobre as vítimas, para a vigilância apertada e permanente dos seus movimentos, contactos e comportamentos. Propiciou também um maior isolamento das vítimas, menos testemunhas, menos possibilidades de pedir ajuda, o sentimento de que ‘não resolveria nada’ e, sobretudo, o medo.
A estratégia, para muitas vítimas, tornou-se assim mais do que nunca a permanente tentativa de ‘acalmar as coisas’, não responder, não fazer nada que pudesse espoletar a raiva e a violência, aguentar.
Esta explicação, ensaiada por quem estuda estes fenómenos, mas também por quem está no terreno e lida com estas situações quotidianamente, é corroborada pelo recente estudo da Escola Nacional de Saúde Pública. O estudo, que analisou a violência auto-reportada durante a pandemia e a procura de ajuda por parte das vítimas, concluiu que “dos 15% de inquiridos que reportaram a existência de violência doméstica entre abril e outubro do ano passado, a esmagadora maioria, 72%, não denunciou nem pediu ajuda”. A diminuição de denúncias, como suspeitávamos, não significa uma diminuição da violência, mas sim mais invisibilidade.
A desconfiança na capacidade das instituições, em especial da Justiça, para as proteger eficazmente, limita a iniciativa das vítimas denunciarem e pedirem ajuda. Convenhamos que razões para desconfiarem não lhes têm faltado. Os dados da justiça mostram bem como a esmagadora maioria dos processos continuam a ser arquivados e a esmagadora maioria das condenações continuam a ser de penas suspensas. Nos casos mais extremos, continuam a ser as vítimas da violência a saírem de casa, deixando para trás a sua vida, a sua rede, o seu trabalho, a sua casa. Continuamos, sim, a ter uma justiça machista que coloca todo o ónus da prova na vítima e continua, tantas vezes, a desvalorizar e a desculpabilizar a violência contra as mulheres.
Mas os resultados do estudo revelam outra realidade devastadora: “34% das pessoas inquiridas foram vítimas de violência doméstica pela primeira vez durante a pandemia”. Situações novas de violência que ocorreram sobretudo entre pessoas com ensino superior e sem dificuldades económicas.
Fica claro que a pandemia e a crise que arrastou consigo agravaram os contextos e fatores promotores da violência doméstica, como agravam qualquer desigualdade estrutural da sociedade.
É responsabilidade dos governos garantir que as medidas de combate à crise não aprofundam as desigualdades de género e que a prevenção e o combate à violência contra as mulheres passam de prioridade nos discursos a prioridade na ação. O primeiro passo terá de ser na Justiça.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico