Disney revisitada

O nível de drama que a Disney nos apresenta é moldado pelo cânone dramatúrgico da tragédia grega e o clímax é quase sempre atingido num momento de sofrimento intensificado, seguido da catarse, a purificação do espectador. E eu estava a precisar da catarse. Acho que precisamos todos.

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"É irónico que este abanão para a urgência da arte nas nossas vidas me tenha chegado através de uma empresa que lucra milhões" Joel Sutherland/Unsplash

Um pai aterrorizado vê os seus filhos que dormiam em paz e a sua mulher que os tentou salvar serem brutalmente assassinados. Apenas lhe sobrevive um filho, a única razão do seu viver que, no primeiro dia de escola, é raptado. Podia ser o início de um filme em que Liam Neeson chora 99% do tempo. Mas é a primeira cena do À Procura de Nemo, da Disney Pixar. Eu adorava esta história e decidi revisitar com a minha filha de dois anos e meio os filmes da minha infância. Não me lembro de ver nenhum filme para a minha idade com uma história tão cruel. O filme segue cheio de cores, corais, peixinhos e um ligeiro travo a desespero.

Comecei esta jornada pelos clássicos da Disney para mostrar aquele mundo mágico à minha filha e, ao mesmo tempo, para tentar distrair-me da catástrofe que se passa lá fora. Mas a Disney não cumpriu comigo a função alienadora do entretenimento. Talvez se tenha aproximado mais da arte. É possível que o entretenimento nos faça esquecer, mas a arte faz-nos lembrar. Lembrar as maravilhas e as tragédias da vida. Lembrar que vamos morrer. Lembrar que as pessoas à nossa volta podem morrer. Lembrar e sentir. Sim, é irónico que este abanão para a urgência da arte nas nossas vidas me tenha chegado através de uma empresa que lucra milhões, que monopoliza um mercado e que é um símbolo do capitalismo ou, como diriam nas aulas de Marketing, um case de sucesso. No entanto, não me posso esquecer que foram estes bonecos que me ajudaram, muitas vezes, a encontrar um oásis de esperança no meio da escuridão. Não pretendo fazer uma ode à Disney. Há coisas que envelheceram mesmo mal, o Vagabundo parece um taberneiro a dirigir-se à Dama constantemente por “borracho” e a misoginia acompanha quase todos os filmes. Mas os filmes da Disney, percebo agora, foram para mim o contacto primordial com o poder catártico da arte.

Queria, então, distrair-me da finitude da vida e do desastre que devasta o país, mas a Disney não deixou. A Cruela rapta 101 cães bebés para lhes tirar a pele e ostentá-las em casacos. O Edgar rapta três gatinhos e a sua mãe para matá-los. Um filho vê o pai a ser assassinado pelo próprio irmão. Até no Hamlet, o Rei Leão para adultos, Shakespeare poupou esse desgosto ao príncipe dinamarquês. Na Disney, não. Vemos mesmo a manada de búfalos a espezinhar o Mufasa até ser poeira. “Ver ou não ver, eis a questão” foi a dúvida que me assolou, enquanto mãe. Mas as nuances da narrativa não são tão perceptíveis para a minha filha, que está mais interessada em dizer “Girafa, girafa!” ou “Um macaco!”, o que me dá alento para continuar, sem culpa, presa à história. O nível de drama que a Disney nos apresenta é moldado pelo cânone dramatúrgico da tragédia grega e o clímax é quase sempre atingido num momento de sofrimento intensificado, seguido da catarse, a purificação do espectador. E eu estava a precisar da catarse. Acho que precisamos todos.

O Bambi, com as suas perninhas frágeis, a chorar ao lado do corpo morto da mãe é o apogeu de tudo isto. Sustenho a respiração e contenho as lágrimas. A minha filha abre a boca e fica muito séria. Aponta para o ecrã e grita: “Olha mãe, olha mãe!” O meu coração acelera, começo a arrepender-me de ter posto aquele filme e fico com uma vontade enorme de mudar para a Xana Toc Toc. Não estou preparada para ter aquela conversa, para explicar que no mundo as mães podem morrer, que nada faz verdadeiro sentido, que a vida pode ser cruel e absurda e que neste preciso instante, lá fora, está a ser cruel e absurda. “'Tá a fazer oó”: grita a minha filha apontando para a mãe do Bambi. E leva o dedo à boca no sinal universal do silêncio: “Chiu.” “Pois é filha, oó.” Ainda deve ser cedo para que ela experimente a purgação através da arte. Mas eu começo a chorar.

É esquisito que, no meio de tantas estatísticas, de tantas mortes diárias e verdadeiras, eu desabe a chorar a ver uma corça deitada na floresta, rodeada de coelhos e corujas. Mas não era só pela mãe do Bambi que eu chorava. Nem pelo viúvo do Up, nem pelo pai do Nemo, nem pelos pais dos Dálmatas. Era por todos os filhos reais, por todos os viúvos reais, por todas as mães e pais reais. E por toda a angústia acumulada, por toda a incompreensão e incerteza. Para Camus, a arte é “uma maneira de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns”. É a educação para a empatia. Agora mais necessária do que nunca. Cabe a nós não deixarmos que comece e acabe na Disney e cultivá-la para sempre.

Seria de esperar que ver estes filmes no estado em que as coisas estão não fosse a melhor ideia. Como pôr álcool numa ferida. Como ouvir uma música triste quando estamos em baixo. Como alguém perguntar o que se passa, quando estamos prestes a desabar a chorar. Mas, depois deste sofrimento intenso, senti-me melhor, como se estivesse a comungar de uma experiência colectiva. A arte lembra-nos que não sofremos sozinhos. Se nos fez sentir, é porque, de alguma forma, também somos nós. Ou, como diria o Rei Leão, “e então vamos descobrir, somos mais do que mil, somos um”.

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