Quanto vale um ministro?
Alguma correcção deve ser urgentemente introduzida para não continuarmos a perder os mais preparados para o sector privado, ou para o estrangeiro. A começar pelos salários.
a alegria de ser eleito
a alegria de ser notado
a alegria de ser perfeito
a alegria de ser devorado
Alexandre O’Neill
O barato sai caro
Provérbio
Se quiser criar uma empresa, um jornal ou um clube de futebol, é natural que me empenhe em recrutar os melhores profissionais de modo a garantir o rendimento óptimo do meu empreendimento. Ciente de que os melhores serão disputados pelos concorrentes, terei de lhes oferecer salários segundo as leis do mercado, mesmo quando estes são escandalosos, como no caso do futebol. Tenho de fazer uma avaliação correcta das suas competências para que este investimento salarial produza depois o justo resultado. O Estado é uma empresa de todos nós, mas não age deste modo, e isso tem tido consequências. Os governos gerem os nossos capitais humanos e materiais, mas, por razões que direi demagógicas, não se dão os meios para enfrentar esta concorrência. O Estado não concorre com outro Estado, mas isso não o isenta de procurar recrutar os melhores profissionais para a gestão da administração pública e a harmonização dos diferentes projectos que nascem no seio da sociedade, no âmago do país que somos. A concorrência na captação dos recursos humanos disponíveis vem do sector privado através da oferta de salários que, nalguns casos, são dez ou vinte vezes os do primeiro-ministro. Os especialistas atraídos por estas vantagens ficam também isentos de passarem a ser vilipendiados, automaticamente, na sua vida privada e pública, como lhes aconteceria desde o primeiro dia em que assumissem funções num Governo.
O país dispõe hoje do melhor escol de sempre de especialistas em todos os sectores, e muitos decidiram integrar os quadros dos serviços públicos, mas muitos outros não se sentiram atraídos pelas retribuições propostas, ou discordam do enquadramento institucional em que deveriam trabalhar. A sua não-integração na gestão de aspectos cruciais da vida portuguesa representa um desperdício enorme, em todos os sentidos, incluindo o do investimento feito na sua formação pelas Universidades. Alguma correcção deve ser urgentemente introduzida neste estado de coisas para não continuarmos a perder os mais preparados para o sector privado, ou para o estrangeiro.
A começar pelos salários. E se o exemplo vem de cima, que se revejam radicalmente os vencimentos dos membros do Governo e dos quadros superiores da administração. Para evidenciar quão flagrante é a disparidade entre o trabalho exigido e a respectiva retribuição, consideremos que os ministros, e os seus gabinetes, em contraste com as 35 horas semanais dos funcionários, trabalharão 10 ou 12 horas por dia, incluindo muitos fins de semanas, sem pagamento extra. Posso imaginar que no momento actual a ministra da Saúde estará de serviço 24 horas.
Como se pode verificar face à covid, a máquina do Estado, constituída por milhares de funcionários, deu resposta a problemas novos com considerável eficácia, embora os media assinalassem apenas as falhas, inevitáveis, face a uma situação inédita. Estamos bem longe, no tempo e na prática do atendimento, do diagnóstico de Alexandre O’Neill: “Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.”
O primeiro-ministro deveria talvez ganhar como o treinador do Benfica, sobre cujos talentos se discute obsessivamente nos programas televisivos, e os ministros tanto quanto os jogadores deste ou de outro clube, na certeza de que estes são seguramente menos úteis ao país.
O primeiro-ministro nomeia o presidente da Caixa Geral de Depósitos, sociedade anónima exclusivamente com capitais do Estado, ou seja nossos, mas a sua retribuição é pelo menos sete vezes inferior ao da personalidade escolhida. O trabalho do primeiro-ministro, cuja actividade interpela toda a vida portuguesa, representa evidentemente uma responsabilidade incomparavelmente superior à do presidente da Caixa, verificando-se uma clara desproporção quando se comparam as retribuições que recebem. Outros exemplos podiam passar por diferenças semelhantes entre os salários dos ministros e os dos presidentes de empresas públicas, que eles escolhem, que são o dobro ou o triplo da remuneração ministerial. Os salários para pessoas com idênticas competências são sempre superiores no sector privado, e nem é preciso evocar os dos administradores dos bancos, sendo possível deduzir que o Estado fica assim amputado dos melhores cérebros.
Sem fazer grandes cálculos, poder-se-á constatar que a soma dos salários dos membros do Conselho de Ministros, no seu conjunto, representa um valor inferior à soma de quanto recebem todos os comentadores políticos das diversas televisões, que vivem, essencialmente, de criticarem, por princípio, os governos, na suposição de que teriam eles melhores aptidões para gerir os nossos destinos. E não discuto agora que assim não pudesse ser.
Diz-se que ser ministro é desempenhar um cargo político e que o titular foi chamado para obedecer e pôr em prática o programa do Governo e o programa do partido que o escolheu, mas deve igualmente exigir-se que conheça a matéria de que se irá ocupar. A regra quase constante tem sido a do não cumprimento dos programas anunciados ao eleitorado, por terem ora uma ambição excessiva, para atrair votos, ora por o exercício real do poder levar a uma navegação ao sabor das circunstâncias, como no caso da imprevisível emergência covid. É claro que muitas destas discrepâncias não seriam consentidas por uma boa gestão no sector privado. Custariam caras. Estas não custam barato a nós todos.
Neste quadro, porque é que um cidadão aceita (ou deseja) ser ministro? Algumas hipóteses: por devoção à causa pública e a convicção de poder pôr em prática ideias longamente amadurecidas; por obediência partidária; pela vaidade de aparecer nos telejornais; por ambição política no seio do partido; pela perspectiva de melhor se inserir no sector privado após a experiência governativa, etc.. Cobrindo tudo isto, podem citar-se imediatamente muitos nomes, e mesmo encontrar casos de confluência de todas estas hipóteses numa só pessoa. E também houve ministros que, pelas acções que promoveram, fizeram avançar substancialmente o país, e estou a recordar-me do Prof. Mariano Gago.
Somos nós, os eleitores, os responsáveis pela escolha dos governos que nos gerem, mas escolhemo-los às cegas. Apesar de a Constituição não o prever, creio que seria honesto, sublinho honesto, que os partidos que se apresentam às eleições legislativas com líderes que ambicionam ser primeiros-ministros anunciassem desde logo o elenco do Governo que fariam se alcançassem esse cargo, com os nomes e as capacidades específicas dos ministros, indicando as suas responsabilidades na formulação dos programas dos partidos. Um governo poderá ser formado para desenvolver no terreno um programa partidário, que se supõe longamente meditado, mas nada obriga a que os ministros estejam afiliados a um partido, pois os partidos raramente têm no seu seio o conjunto das pessoas mais aptas para todas as pastas a ocupar. Quando votamos, elegemos uma Assembleia, da qual resultará um Governo, e deveríamos ficar a saber, desde logo, quanto vale um ministro, e o que podemos dele esperar. Seria um acto de respeito pelos cidadãos.