Antes do 25 de Abril, Maria Lamas foi duramente criticada por ir ao teatro de vestido vermelho. Durante um comício da campanha das Presidenciais 2021, o candidato do partido de extrema-direita insultou “os lábios muito vermelhos” de Marisa Matias. Depressa as redes sociais se encheram da hashtag #VermelhoemBelem como forma de protesto. Uma semana depois, as especialistas em moda e estudos de género ouvidas pelo PÚBLICO consideram que “não nos estamos a agarrar a um pormenor fútil” e que o episódio não deve ser esquecido.
Na revista da Mocidade Portuguesa, do Estado Novo, era frequente surgirem artigos sobre como uma “mulher honrada” se deveria vestir, conta Maria João Martins, jornalista e docente de História Social da Moda na Universidade Carlos III, em Madrid. Além de recomendar o que devia vestir a mulher — roupas discretas, que não deveriam ser justas, nem coloridas — a revista do regime também sugeria que o batom vermelho “não era adequado”.
O vermelho era associado pelo regime às prostitutas, “a mulheres diabólicas e arrojadas”, diz por seu lado Manuela Tavares, membro da direcção da União de Mulheres, Alternativa e Resposta (UMAR ), uma associação de defesa dos direitos das mulheres, e investigadora no Centro Interdisciplinar de Estudos do Género no ISCSP, em Lisboa. A “aversão” a esta cor tem, explica a especialista, uma “conotação de raiz fascizante e conservadora”.
Maria João Martins recorda que nas ditaduras de inspiração católica, a tentativa de “interferir na relação com o corpo”, sobretudo das mulheres, “é ainda mais acentuada”. Ainda que nem todas as mulheres fossem directamente censuradas pela sua maneira de vestir e maquilhar, tinham “medo de ser faladas”. Apenas “mulheres subversivas”, como, por exemplo, Natália Correia, usavam batom vermelho.
Ódio contra as mulheres
Nos anos 1960 com os movimentos feministas em Portugal tudo muda e as estudantes do ensino superior começam a usar maquilhagem e a vestir calças. “O batom vermelho é uma declaração de independência e de poder sobre o próprio corpo”, analisa Maria João Martins. Porquê? Porque “nada tem a ver com o rosa”, a cor tipicamente associada às mulheres, destaca, por sua vez, Manuela Tavares. “O vermelho assumiu este significado simbólico, das mulheres e da sua luta contra o conservadorismo”, salienta a investigadora.
Para as especialistas, o ataque do líder do partido da extrema-direita ao batom vermelho de Marisa Matias é apenas levantar o véu. “Quando se começa por atacar a questão do batom, não tenhamos dúvida que depois vão ser atacadas outras conquistas das mulheres nos últimos 40 anos”, alerta Maria João Martins, que acredita o que ataque do líder do Chega foi “instintivo”, por Marisa Matias “ter poder sobre o próprio corpo”. A investigadora Manuela Tavares acredita que “todo ódio que ele [Ventura] tem dentro de si, também se expressa contra as mulheres”.
A moda é uma “representação dos quadros sociais de cada época” e “diz muito” sobre a sociedade, assegura a especialista em História Social da Moda, que alerta que não nos estamos “a agarrar a um pormenor fútil”. A jornalista conta que quando foi votar antecipadamente, no passado domingo, levou uma pregadeira com um batom vermelho e apela que “mesmo quem não vota na Marisa, tem de estar solidário com esta posição”. “É um ataque às nossas liberdades”, conclui.