Confinar só não chega. É preciso testar, testar muitos e testar rápido
Especialistas em saúde pública defendem que existe “uma imunidade induzida pela testagem”, algo como uma vacina que protege os outros, e que se consegue com um acesso generalizado a testes rápidos. E se, já agora, fosse possível fazer um teste em casa?
A ideia de que os testes rápidos (de antigénio) podem ser uma ferramenta importante no controlo da epidemia, ajudando a quebrar as cadeias de transmissão, não é nova. No entanto, na actual crise – com os hospitais no limite e uma ordem de confinamento que não está a surtir o efeito esperado –, a questão é mais urgente do que nunca. Identificar rapidamente os casos positivos para quebrar as cadeias e, nem que seja mais lá para a frente, conseguir abrandar a pandemia será para alguns especialistas tão ou mais importante como confinar. Mas a tarefa não será fácil, tanto mais que em Portugal se exige a prescrição e a presença de um profissional de saúde para realizar os testes rápidos de antigénio de infecção por SARS-CoV-2.
Há um cientista norte-americano que há muito tempo se bate pelo uso generalizado e em massa dos testes rápidos para diagnosticar casos positivos de covid-19. Michael Mina, professor em Harvard, defende a ideia de “imunidade induzida pela testagem” e, num dos artigos publicados sobre o tema, o epidemiologista argumenta que o rastreio à população é uma poderosa ferramenta de saúde pública que tem sido ignorada e que os testes rápidos têm uma sensibilidade e especificidade elevadas, ao contrário do que já se pensou sobre o assunto. A ideia, explica num artigo da Science, é “ter um número suficiente de pessoas a testarem-se a si próprias frequentemente – digamos, duas vezes por semana –, idealmente utilizando testes rápidos”.
Permitir que as pessoas saibam, facilmente, se se encontram ou não infectadas seria uma forma de travar a transmissão da comunidade. Mas onde e como? Em casa como se faz com outros testes de autodiagnóstico, sugere Michael Mina. “Se apenas 50% da população se testar desta forma a cada quatro dias, podemos alcançar ‘imunidade de grupo’ semelhante à da vacina”, refere explicando que se a infecção não tiver forma de se “alimentar” na comunidade e as cadeias de transmissão forem quebradas, o surto colapsa.
“Ao contrário das vacinas, que impedem a transmissão através da imunidade, os testes podem fazê-lo dando às pessoas as ferramentas para saberem, em tempo real, que são contagiosas e assim impedirem a sua propagação aos outros”, escreve num outro texto publicado na revista Time. “Os testes em casa não são uma acção publicamente visível. É tão privado como escovar os dentes de manhã”, diz o especialista, insistindo que este gesto dará “informação crítica” sobre o estado daquela pessoa, o que a ajudará a fazer escolhas responsáveis pela sua família, amigos e membros da comunidade, e ajudará imediatamente a reduzir a taxa de transmissão do vírus. “Mesmo se as pessoas não se isolarem completamente, acreditamos que, ao receberem um resultado positivo, a maioria dos adultos optará por modificar o seu comportamento para evitar que os seus entes queridos adoeçam”, acredita o cientista, que sublinha que face a um resultado positivo será sempre necessário uma confirmação com outro teste mais sensível e específico (como o PCR).
Teste caseiro como o do VIH?
No entanto, o gesto que Michael Mina quer levar para casa das pessoas não é tão simples assim. Em Portugal, não é sequer possível equacionar essa hipótese. “Os testes laboratoriais para SARS-CoV-2 devem ser prescritos e interpretados de acordo com uma finalidade clínica e de saúde pública”, refere a norma conjunta da Direcção-Geral da Saúde (DGS), da Autoridade Nacional para o Medicamento (Infarmed) e do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa) que estabelece que não só é obrigatória uma prescrição como também se exige que qualquer teste para o SARS-CoV-2 seja realizado por um profissional de saúde. Noutros países, como os EUA, já é possível há algum tempo fazer um teste em casa, mediante prescrição. E mesmo em Portugal é possível fazer outros testes rápidos de autodiagnóstico em casa pelas próprias pessoas de forma autónoma, como acontece no caso da infecção por VIH.
O caso do SARS-CoV-2 é diferente. Um dos testes rápidos mais fiáveis implica que a recolha da amostra seja feita com zaragatoa, num procedimento que é delicado. É claro que existem já testes de autodiagnóstico mais fáceis, através da saliva ou de uma pequena amostra de sangue (uma picada), mas mesmo esses que já são comercializados em Portugal exigem a supervisão de um profissional de saúde. E a verdade é que, para muitos especialistas, mais até do que as dificuldades da parte técnica de um teste com zaragatoa, a presença de um profissional de saúde na altura do teste será essencial para que o doente tenha o devido acompanhamento clínico e saiba o que fazer a seguir a um resultado positivo ou negativo.
“À data, os autotestes não estão incluídos na Estratégia de Diagnóstico da Covid-19”, lembra o Infarmed em resposta ao PÚBLICO. Ainda assim, acrescenta a mesma fonte, estão autorizados. “Os autotestes deverão ostentar a marcação CE com o código de identificação do organismo notificado, o que evidencia a conformidade com a legislação aplicável e juntamente permite a livre circulação dos testes no mercado europeu”, esclarece o Infarmed, que confirma ainda que em todos os casos se prevê que o teste seja supervisionado por um profissional de saúde. Por fim, enquanto autoridade competente para a fiscalização de mercado dos dispositivos médicos de diagnóstico in vitro (em que se incluem os testes de diagnóstico da covid-19), o Infarmed sublinha que pode condicionar o acesso a estes meios. Ou, no seu tom oficial, “poderá adoptar medidas restritivas de mercado no âmbito das suas competências, de acordo com a legislação aplicável, sempre que tal seja necessário”.
A velocidade e a precisão
Bernardo Mateiro Gomes, médico de saúde pública, repete a frase três vezes: “Na gestão de uma crise destas a velocidade é melhor do que a precisão.” No final de Dezembro, num artigo de opinião que parecia antecipar o que estava para vir, o especialista pedia no PÚBLICO “uma resposta local, assertiva e rápida” só possível com a generalização de testes rápidos. “Completemos o puzzle da resposta à covid-19 com as ferramentas que temos à disposição. Já temos lições de sobra do que acontece com hesitações na resposta”, avisou. Agora, o médico teme que seja tarde demais. “Independentemente do que for feito hoje, há uma história dramática de óbitos que vai continuar e essa história já está escrita”, diz ao PÚBLICO.
Ainda assim, o especialista continua a afirmar que a generalização de testes rápidos só peca por tardia. “Não consigo encontrar nenhuma justificação para não termos já feito isso”, diz. Detectar o maior número de casos e o mais rápido possível é essencial e urgente, argumenta. E não só nas escolas, mas em todo o lado, defende Bernardo Mateiro Gomes, corroborando a garantia de uma elevada sensibilidade e especificidade destes testes, ao contrário do que se pensava há uns meses. Mesmo que estes testes não detectem cargas virais muito baixas ou infecções muito iniciais, o método rápido e barato permite apanhar as cargas virais mais elevadas, logo, as “pessoas mais importantes”, porque serão também as mais infecciosas. Uma pessoa com sintomas e que tenha um resultado negativo num teste rápido deve sempre repetir a análise com um PCR, mas “um positivo é positivo”.
Por essas e outras, o médico apoia também a ideia da “imunidade induzida pela testagem” defendida por Michael Mina, mas prefere ver a utilização destes testes vigiada por um profissional de saúde. Em relação aos testes PCR, os testes rápidos terão duas grandes vantagens que neste momento não nos podemos dar ao luxo de desprezar: o custo (são mais baratos) e a rapidez do resultado que permite também a rapidez da decisão. Por isso, repete uma vez mais ainda que nesta altura “a velocidade é melhor do que a precisão” e que a gestão da pandemia precisa agora de “decisões mais rápidas ainda que imperfeitas”. Esperar 48, 72 ou 90 horas por um teste PCR “roça a inutilidade” em termos de controlo da infecção, diz.
Olhando para a situação actual no país, o médico de saúde pública nota que confinar mais só não chega, mas que também só aumentar mais o acesso aos testes rápidos também não chega. “Além dos testes rápidos não vamos conseguir evitar impor medidas mais restritivas também, porque a transmissão é de tal maneira intensa que só uma delas não chega.” Nos últimos dias, vários especialistas em Portugal defenderam que para tentar quebrar as cadeias de transmissão que estão claramente fora do controlo era necessário duplicar o número de testes realizados no país. Depois de vários dias com números na ordem dos dez mil novos casos, Manuel Carmo Gomes questionava mesmo se o máximo de capacidade de testagem foi atingido no país, receando que esta aparente estabilidade fosse sinal de um “tecto falso” com muitos mais casos por despistar.
Os limites da capacidade de testagem
Em resposta às questões enviadas ao Ministério da Saúde pelo PÚBLICO, o Insa esclarece que a actual rede de laboratórios (públicos e privados) responsável pelo diagnóstico laboratorial do SARS-CoV-2 (por PCR, a metodologia de referência) é constituída por “142 laboratórios, o que permitiu a Portugal passar de uma média de cerca de 12 mil testes por dia realizados em Abril de 2020, para cerca de 45 mil testes por dia até 16 de Janeiro de 2021”. Sobre a capacidade de testagem, o valor situa-se hoje em “cerca de 60 mil testes diários”, sem necessidade de afectar recursos adicionais. Ou seja, pode ainda aumentar com um reforço de recursos e horário, se for necessário. “À capacidade de testes por RT-PCR acresce ainda a possibilidade de utilização de testes rápidos de antigénio, o que permite aumentar, ainda mais, a capacidade de testagem do país”, adianta ainda o Insa, explicando que Portugal se encontra “a testar de acordo com as necessidades colocadas pela actual situação epidemiológica e com possibilidade de aumentar essa capacidade se tal for necessário”.
Quanto à evolução do número de testes, refere-se ainda que, “até à data, Novembro e Dezembro foram os meses em que mais testes se realizaram, com 1.131.782 e 1.060.744, respectivamente”. “De referir ainda que, desde o início da pandemia, a semana 01/2021 (4-10 Janeiro) foi aquela em que se verificou o maior número de testes realizados (335.992)”, conclui.
De facto, os números da DGS mostram um claro aumento dos testes realizados em Portugal, no entanto, a grande maioria dos testes é de PCR. Na média das duas primeiras semanas deste ano, foram realizados por dia mais de 40 mil testes PCR, mas apenas cerca de seis mil testes rápidos.
Um número que vai necessariamente aumentar muito com a campanha de rastreio que esta quarta-feira se inicia nas escolas situadas em concelhos com nível de risco extremamente elevado. Mas os números e os piores recordes da pandemia que se quebram dia após dia mostram que será preciso mais do que isso. Muito mais.