Verdade e responsabilidade, justiça e política: ainda a propósito do procurador europeu
O ex-director-geral da Política de Justiça que se demitiu na sequência do caso do procurador europeu revela neste texto os contornos do processo vividos na primeira pessoa. E dá conta dos custos do esvaziamento dos serviços do Estado na administração da Justiça.
1. A Procuradoria Europeia é uma nova instituição da União Europeia, criada por um regulamento europeu publicado em 2017 (Regulamento UE 2017/1939) e que tem como funções “investigar, instaurar a ação penal, bem como deduzir acusação e sustentá-la na instrução e no julgamento contra os autores de infrações cometidas contra os interesses financeiros da União”, ou seja, crimes graves envolvendo fundos europeus, incluindo eventual corrupção e branqueamento de capitais associado, e se necessário chamando a si a condução de investigações em curso pelas autoridades judiciárias internas dos Estados da União. Trata-se, portanto, de um verdadeiro Ministério Público Europeu, mas especializado em alguns crimes e que pode avocar investigações e substituir-se ao Ministério Público nacional em processos concretos – ou seja, se levada a sério e se tiver meios humanos e técnicos adequados, é efetivamente uma nova ferramenta, poderosa nas suas atribuições e consequências, para investigar e ajudar a punir o uso criminoso de fundos europeus, ou seja, dos nossos impostos.
2. Na Procuradoria Europeia, para além da sua chefia, o procurador-geral europeu, exercem funções os designados “procuradores europeus”, um por cada Estado-membro da União associado a esta instituição. Para tal, cada governo remete três propostas de nomes, naturalmente pessoas que cumpram os critérios de recrutamento e currículo fixados no regulamento europeu. Segue-se uma apreciação e a escolha de um desses nomes por parte de um comité de seleção específico, composto por “12 personalidades escolhidas de entre antigos membros do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, antigos membros da Eurojust, membros dos supremos tTribunais nacionais, procuradores de alto nível e juristas de reconhecida competência”, que o proporá finalmente a decisão do Conselho da União Europeia (reunião dos governos nacionais), para ser nomeado como procurador europeu. Isto foi o aprovado como procedimento de seleção em 2017, pelos governos dos Estados-membros que se associaram à Procuradoria Europeia, nos quais se incluiu Portugal, e igualmente pelo Parlamento Europeu.
3. Como se chegou em Portugal aos três candidatos a enviar? Poderia ter havido uma simples escolha direta de pessoas, política ou institucional. Mas o Governo, através da ministra da Justiça, optou por publicitar, em 2 de janeiro de 2019, um procedimento de recrutamento de candidatos para juízes e procuradores, a ser assumido pelo Conselho Superior da Magistratura e pela Procuradoria-Geral da República e, entretanto, apresentou à Assembleia da República uma proposta de lei sobre esta matéria.
A proposta de lei foi efetivamente aprovada com os votos a favor do PS, PSD, CDS e PAN, abstenção do BE e votos contra do PCP e PEV (Lei n.º 112/2019, de 10 de Setembro), em que se atribuiu precisamente ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Superior do Ministério Público a tarefa de selecionar três juízes e três procuradores, respetivamente, como candidatos a apresentar ao Governo. Desses seis candidatos, sujeitos também a audições na Assembleia da República, o Governo escolheria três e deixaria depois a escolha final ao comité de selecção europeu e ao Conselho da União Europeia, conselho em que obviamente tem assento. Uma solução de algum modo salomónica, portanto, e genericamente apreciada favoravelmente, associando diretamente a gestão das corporações profissionais ao resultado e, simultaneamente, permitindo uma escolha, já condicionada, por parte do executivo. O Parlamento, que aprovou a lei por uma imensa maioria, e o Presidente da República, que a promulgou em 6 de agosto de 2019, são igualmente responsáveis pelas suas escolhas e decisões.
4. E que efeitos teve esta lei, neste processo? Nenhuns. Recorde-se: esta lei foi apenas publicada em setembro de 2019, mas, na verdade, procedimentos nela previstos para a escolha de candidatos portugueses a procurador europeu, desde logo na esfera do Ministério Público, estavam já concluídos e os candidatos decididos.
O Conselho Superior do Ministério Público graduou os candidatos que concorreram em 28 de fevereiro de 2019. O Governo apresentou a proposta de lei ao Parlamento no dia 20 de Março de 2019. A própria Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República ouviu os candidatos em 22 de março de 2019. O comité de seleção europeu já havia entretanto escolhido a senhora dra. Ana Carla Almeida como a melhor graduada para procuradora europeia por Portugal. A Lei n.º 112/2019 entrou em vigor apenas em outubro de 2019.
5. Mas porque decidiu Portugal não seguir o resultado da apreciação do comité de seleção europeu e substituí-lo por outro? Podia efetivamente fazê-lo? De acordo com o regulamento que criou a Procuradoria Europeia, aprovado pelo Conselho da União Europeia e pelo Parlamento Europeu em 2017, é claramente estabelecido que cabe ao comité de seleção propor, através de parecer fundamentado, aquele que lhe pareça o melhor candidato para procurador europeu, mas que este deve ser depois “selecionado e nomeado” pelo Conselho da União Europeia. Assim, é claro que cabe, nos termos legais, ao Conselho da União Europeia nomear – e fá-lo, naturalmente, por proposta dos seus membros, ou seja, dos membros dos governos dos Estados-membros. Uma decisão de execução do Conselho da União Europeia de 2018 (Decisão 2018/1696) sobre a mesma matéria assinala isso mesmo adicionalmente: “O comité de seleção classifica os candidatos em função das respetivas habilitações e experiência. A classificação indica a ordem de preferência do comité de seleção e não vincula o conselho.”
Ora, como ocorreu isso em Portugal, naquela que é a primeira nomeação para o cargo de procurador europeu? É o que procurarei explicar mais à frente, apenas na lógica de que quem exerce um cargo público deve estar sempre pronto a explicar publicamente factos e circunstâncias do seu exercício.
6. Este é assim um texto sem qualquer intuito de vingança privada. Poderá haver quem o queira ver como tal – estará enganado, no seu pleno direito ao erro. A tranquilidade e liberdade de quem não depende de qualquer cargo público de nomeação ou da vontade e estado de espírito de um qualquer negócio ou de qualquer acionista é insubstituível. Esta liberdade, podendo ser aparente, oferece-me, todavia, coisas que reputo valiosas, e que me parecem relevantes, como o respeito pela verdade e a liberdade absoluta de pensar sobre a atuação política e o funcionamento da administração pública.
7. Demiti-me no dia 4 de janeiro de 2021 do cargo de diretor-geral da Direção-Geral da Política de Justiça do Ministério da Justiça (DGPJ), pedido de demissão que a senhora ministra da Justiça aceitou. Fi-lo por uma razão simples: o serviço que eu dirigia preparou um documento com dois erros factuais – o tratamento de cortesia como procurador-geral Adjunto de um magistrado que é efetivamente procurador da República; e a referência à sua intervenção no inquérito e no julgamento de um determinado processo, quando tal apenas terá ocorrido na fase de julgamento. Documento que eu li e remeti aos seus destinatários devidos, sem deter eu pessoalmente elementos na altura que desmentissem ou me alertassem para esses erros. Mas esses erros revelaram-se determinantes para a perceção pública desta direção-geral e da sua equipa, desde logo da sua seriedade, da sua transparência de atuação e do seu profissionalismo. E defender também isso fazia parte do meu cargo, fazia parte dos meus deveres.
8. Algo adicional deve também ser claro: nunca a senhora ministra da Justiça me deu instruções para defraudar currículos ou informações a prestar a entidades externas. Pode parecer um detalhe e ser uma desilusão para alguns, mas é a verdade. E a verdade, já agora, deve ter valor e ser claramente afirmada. Foi assim. Não foi de outra maneira.
9. Que instruções recebi, então?
No dia 25 de novembro de 2019, recebi na DGPJ instruções escritas, indicando que esta direção-geral deveria remeter diretamente para a nossa Reper em Bruxelas a indicação da discordância quanto à candidata preferida pelo comité de seleção e que o Governo português pretendia a nomeação de um outro candidato, cujo nome foi transmitido, que não o senhor dr. José Guerra, nem sequer a outra senhora procuradora candidata ao cargo. Tal foi comunicado efetivamente nesse mesmo dia à Reper, bem como à Direção-Geral dos Assuntos Europeus, tendo este último serviço recordado que, não havendo concordância com a escolha do comité de seleção, essa discordância teria de ser devidamente fundamentada, nos termos legais.
No dia seguinte, 26 de Novembro de 2019, fui convocado para uma reunião presencial com a senhora ministra da Justiça e recebi, com outros colegas, instruções para a DGPJ preparar uma fundamentação escrita que permitisse justificar a escolha para procurador europeu nacional – mas agora em relação à opção pelo senhor dr. José Guerra. Tal deveria ser fundamentado no facto do senhor dr. José Guerra ter sido o mais graduado pelo Conselho Superior do Ministério Público nacional e em elementos curriculares e de desempenho profissional objetivos, alguns dos quais indicados pessoalmente pela senhora ministra, que justificariam essa opção. Opção que é, nos termos legais, válida e igualmente legítima do ponto de vista político. A Direção-Geral da Política de Justiça tem inúmeras funções e tarefas. A de escolha política do procurador europeu nacional não é uma delas.
10. É hoje conhecido o resultado deste processo: essa fundamentação foi preparada na DGPJ, enviada no dia 29 de Novembro de 2019 para a Reper em Bruxelas, à Direção-Geral dos Assuntos Europeus e ao gabinete da senhora ministra da Justiça. Continha dois erros factuais, atualmente públicos, erros que o currículo do senhor dr. José Guerra, já então ao dispor da Reper e dos serviços do Conselho da União, não apresentava.
11. Como se justificam os erros nesse documento? Creio que apenas perante a urgência e pressão para apresentar um documento rapidamente, traduzi-lo para inglês e remetê-lo. Ninguém mandou adulterar factos ou categorias profissionais. Não foram erros premeditados ou conscientes da DGPJ, ou sequer nascidos da vontade, por vezes demasiado humana, de agradar “ao chefe” ou “à ministra”.
12. Então, se é assim, porque se demitiu, podem perguntar alguns? Simplesmente porque vivo mal com os erros e não quero deixar sobre ninguém, pessoa ou instituição, o anátema de ter errado e ninguém ter sido solidário ou responsável por isso no fim da escala. The buck stops here, como se diz. E acredito que isto é devido institucionalmente e moralmente bom. Não me demiti porque tenha participado numa qualquer “cabala para condicionar instituições europeias” ou algo do género, coisa que não acho que exista. Demiti-me, porque remeti, como diretor-geral, um documento de fundamentação que continha dois erros factuais, provavelmente irrelevantes no resultado final do processo em causa (dado estar em causa uma escolha política), e que eu não pude verificar de acordo com os elementos de que dispunha pessoalmente, mas que criaram danos reputacionais e de dignidade externa no departamento que eu dirigia.
13. Em relação aos momentos subsequentes, devo apenas dizer que me parece ter havido algum aligeirar de deveres. Não me passa pela cabeça receber-se no gabinete de um membro do Governo ou na Reper (que tem, aliás, um embaixador, diversos diplomatas que o apoiam, uma coordenadora dos assuntos Justiça e mais 17 técnicos afetos à área “Justiça e Assuntos Internos”, segundo o seu website – e não seria mais útil ter, ao invés, mais alguns juízes e procuradores a trabalhar nos nossos tribunais?...) uma fundamentação de decisão, acabada de seguir por urgência expressa assinalada pela própria Reper, que altera a proposta de um júri internacional para um cargo novo e unipessoal, numa nova agência europeia na área da Justiça, e esta não ser apreciada, para mais com lapsos que seriam evidentes perante um CV e informação de que se dispunha. Ou considerando-se, segundo ouvi, até de facto com alguma graça, que seria “para arquivo”. Ou nem sequer disso se dando conhecimento direto à ministra da Justiça, ao que sei, no caso do seu gabinete; ministra que, pelo seu percurso profissional anterior e por ser a requerente e instruenda dessa fundamentação, a poderia facilmente verificar e corrigir os lapsos em causa. Acredite quem quiser. Mas estas duas instâncias, em Lisboa e em Bruxelas, tinham gestores diretos deste processo em concreto, que hoje devem sentir-se um pouco menos felizes nas suas funções.
Como afinal disse Bento de Jesus Caraça: “Se não receamos o erro, é porque estamos sempre prontos a corrigi-lo.”
14. Estes factos terminam aqui. Na minha perspetiva, apenas posso estar feliz por ter tido o privilégio de trabalhar com colegas na DGPJ, na sua generalidade, íntegros, dedicados e competentes. Entramos agora noutro nível. E esse nível é o do enfrentar deveres e questões que transcendem os factos circunscritos de uma situação e, na verdade, me parecem os fundamentais e sistémicos. E que se traduzem, em termos simples, desde logo em dois aspetos:
- A pressão permanente – e que convida infelizmente ao erro – que se sente em muitos serviços da administração pública central, depauperados de técnicos, por anos e anos de falta de recrutamento, de renovação e de qualificação nos serviços públicos, o que terá de ser enfrentado de forma decisiva pelos decisores políticos, muito em breve. Um bom exemplo é, aliás, a própria Direção-Geral da Política de Justiça, que resultou da fusão de vários serviços e agrega hoje trabalho e responsabilidades que já estiveram distribuídos por quatro diretores-gerais e quatro direções-gerais do Ministério da Justiça, entretanto extintas (Direção-Geral da Administração Extrajudicial, Gabinete de Política Legislativa e Planeamento, Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação e Gabinete de Auditoria e Modernização), com muito menos funcionários e menor capacidade objetiva de resposta;
- O medo de assunção e clarificação de responsabilidades políticas e a tentação de revestir de uma carga técnica supostamente legitimadora qualquer decisão política. Ora isso não é mais do que os políticos a apoucarem-se a si próprios... E tal facilita claramente a demagogia e o populismo, mesmo que se procure o contrário. É preciso que se diga claramente que uma decisão política, democrática, legal, justificável e transparente é a melhor garantia que todos nós temos na nossa relação com o Estado. O Estado precisa de decisões políticas plenas e claras. Não precisa, por exemplo, de um qualquer autogoverno, supostamente legitimado pela tecnicidade ou pela autonomia funcional, de corporações profissionais, sejam elas da Justiça, da Saúde ou de outras áreas, porque aí serão sempre os mais poderosos e os autoimplicados a decidir conforme os seus melhores interesses. É natural, é humano…
E creio hoje que, na área da Justiça, corremos algum risco de regredir de uma visão da administração da Justiça como política pública e serviço público, em que o mais importante são os serviços prestados às pessoas e às empresas suas utilizadoras (algo, aliás, inaugurado por António Costa, enquanto ministro da Justiça, e pela sua equipa de governo – Eduardo Cabrita e Diogo Lacerda Machado –, em 1999, honra pública que ninguém lhes retirará), para o regresso a uma visão da política de Justiça como autogoverno e arbitragem dos interesses, mais ou menos diretos, dos profissionais do sistema, a coberto de um discurso legitimador fixado, nomeadamente, na sua independência e autonomia.
Efetivamente, António Costa, Eduardo Cabrita e Diogo Lacerda Machado, entre 1999 e 2002, conseguiram idealizar e concretizar boa parte de um projeto de modernização inadiável do modo de pensar e executar a Justiça e libertá-la da condenação a uma submissão perante as corporações do setor. Isso é algo valioso, honroso e que lhes é devido, mesmo que possa hoje não ser conveniente recordar. Tive até pessoalmente a possibilidade de colaborar, sem grande importância, com essa equipa e esse espírito. Recém-licenciado, tinha respondido a um concurso público de recrutamento para assistentes estagiários na Faculdade de Direito, sido admitido e, entretanto, fui também convidado para trabalhar no Ministério da Justiça, como consultor jurídico, sem qualquer “contrato para a vida” ou garantias adicionais, tendo, aliás, saído, por minha iniciativa, para trabalhar numa tese académica. Assim começou a minha vida profissional no direito e na justiça.
15. A independência é decisiva na condução de um julgamento, na feitura de uma sentença judicial ou na coordenação de um inquérito. Eu sou o primeiro a querer juízes e procuradores independentes, autênticos, bem pagos e sérios! Mas a política, democraticamente referendada, coincidente com valores universais, princípios constitucionais e com programas políticos prévios apresentados aos eleitores, é absolutamente fundamental na organização do sistema e na melhoria do acesso das pessoas aos serviços da Justiça, desde logo aos tribunais.
Quem apoucar a decisão política democrática, justa e legal, e não a defender nos seus fundamentos, ficará infelizmente sempre sujeito ao arbítrio e à injustiça, com maior ou menor consciência disso, mais cedo ou mais tarde. É essa a lição da História. Mas cá estaremos para defender os injustiçados e os excluídos, porque, afinal, é isso o decisivo em qualquer modelo de Justiça e o que nos torna mais humanos e mais dignos, numa democracia recente como a nossa e que foi rejeitando, há pouco tempo, polícias políticas, tribunais plenários, nomeações de favor, despedimentos por convicções políticas, discriminações de género e tantas outras.
Isso já passou. E tive também a oportunidade de assistir em tribunal a procuradores do Ministério Público, em julgamento, a pedir a absolvição de arguidos, tratados como “criminosos óbvios” na acusação anterior, do mesmo Ministério Público, por reconhecerem um dever de justiça e de verdade. A burocracia automática, fácil e conveniente não pode vencer no fim.
Defendamos todos o que temos – e, mais do que isso, a sua melhoria e consistência acrescidas, ao serviço em primeiro lugar de quem usa e precisa de um sistema público de Justiça, universal, acessível, atempado e decente, e não apenas de quem é seu profisssional e seu dependente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico